Apenas os muros brancos do Campo Santo, emergem do cinzento
da paisagem. Dali, do cimo do morro, apenas se divisa o casario da aldeia.
Velhos telhados estrangulados por ancestrais olivais, parecem flutuar ao acaso
num ordenamento desordenado. O silêncio é quem mais ordena e, casualmente,
apenas o latir distante de um cão, estremece o pasmo do povoado semeado monte
acima em aglomerados de quintais, árvores de fruto e chaminés que se erguem ao
céu como sentinelas ao vento.
Desço a rua estreita e asfaltada e ali, naquela curva
apertada, vejo um homem. Vem em passo lento e cadenciado. Apesar deste dia de fevereiro
já parecer um passaporte para a primavera, traz uma samarra pelos ombros. Na
mão, como se fosse a extensão do seu corpo franzino, um bordão. Mais do que um
amparo, aquele pau que maneja com destreza acompanhando-lhe os passos, é a sua
companhia. Também o pequeno cão irrequieto, que vai cheirando as estevas e as
barrocas, na procura de alguma novidade que o faro lhe pressente. Depois, numa
pequena poça, vai bebendo sofregamente água. Com a sua língua comprida, vai
armazenando em movimentos sincronizados e rápidos, o líquido barrento que a
pequena charca lhe oferece.
O caminhante cruza-se comigo e fixo-lhe o rosto franzino. É o
António Vaz. Ele, depois de uns segundos de mutismo, reconhece-me e igualmente
quem me acompanha. Então falou. Falou dos seus noventa e três anos de idade. Falou
dos seus “chãos”, que ainda vai tratando como pode. E, apesar de viver sozinho,
porque há muito que a sua dedicada irmã partiu, não falou de saudade nem da
solidão que lhe vi nos seus olhos pequenos e conformados. Depois, despediu-se de nós. Especado no meio da estrada,
fui-lhe acompanhando a ausência, até que desapareceu na curva de uma fazenda.
Não sei se o voltarei a ver, porque curto já é o caminho.Sei, apenas sei e recordo, dos dias em que o António Vaz
preparava a malga onde os parceiros à volta da mesa tosca, comiam as batatas
com atum na taberna do velho Real. Sei, apenas sei e recordo, da salada alface
e tomate, regada generosamente com o azeite fino do Juncal do Campo, um regalo
para a vista e para o paladar. Sei, apenas sei e recordo, do garfo que era o único talher que ia passando de mão em mão,
naquela fraternidade partilhada. Sei, apenas sei e recordo, dos pequenos copos
de vidro, já baços de tanto uso, que corriam pela mesa, prenhes do vinho tinto
que escorria a compasso pela torneira da velha pipa de madeira. Sei, apenas sei
e recordo, que quando o Vaz se despediu, olhei a pacatez da aldeia que parecia
ter-se escoado por um ralo, morta de solidão.
Agora que navego por outras realidades, outros mundos de
janelas abertas de par em par mais perto do mar Atlântico, estranhamente e com
surpresa, senti nos meus olhos cansados, um leve sopro de nostalgia.
Quito Pereira
Juncal do Campo já ficou presencialmente para trás, mas permite-no saborear este belo texto.
ResponderEliminarSão agora recordações desse tempo vivido com o sentimento do dever cumprido durante largos anos em que as amizades com as gentes simples permitem o conhecimento do seu modo de ser, de estar ao longo de uma vida, talvez feliz apesar dum quase isolamento!
Obrigado!
O Quito escreve textos de muita qualidade. Devia experimentar uma "saramagueada", isto é exterminar parágrafos. Era uma experiência interessante.
ResponderEliminar...mas isso teria que passar uns tempos por um convento e não me parece que esteja nos seus horizontes!
ResponderEliminarPara mim que sou um "precário" leitor, os parágrafos são estimulantes...
Meu caro Manuel Cruz
ResponderEliminarAchei oportuno o teu comentário. Se reparares, dei uma "saramagueada" ao texto. Aliás, como estava inicialmente no meu arquivo. Porém, em tempos recuados, "pediram-me" para o pôr os textos da forma como o publiquei, para uma mais fácil leitura. Apenas o pequeno reparo de ao meteres Saramago no teu comentário, é uma espécie de blasfémia e "ofensivo" ao Nobel. Lembro-te que sou completamente amador, escrever é um passatempo para mim, sempre ciente das minhas limitações que são muitas e que assumo por inteiro. De resto sempre o afirmei e o Rafael é testemunha disso, nestes nove anos que o blogue já tem. "Alimentar" diariamente isto não é fácil, agora que as motivações das pessoas são outras.
A amizade com o Fernando, leva-me a que, com gosto, vá "ajudando" o blogue dele a sobreviver. Naturalmente que no dia em que o E.G, encerre, eu arquivo a caneta. Nada me move a não ser o associativismo de que sempre fui e sou adepto. Mesmo quando outros abandonam o barco, eu continuo a remar.
Mando-te um abraço amigo
Quito Pereira
Vai ser uma pena se arquivares a caneta. Espero bem que isso nunca aconteça.
ResponderEliminarE já agora, que tal arranjares 20 ou 30 textos e fazer um livro, como eu fiz com os contos da Daisy? Era capaz de ser interessante. Pensa nisso.
Deve mesmo pensar!
EliminarMais um texto do Quito dentro do que nos habituou, ou seja saborear a vida do dia a dia.
ResponderEliminarPor outro lado estou absolutamente de acordo com o Alfredo Moreirinhas mas arranja lá textos novos porque dos que já aqui apareceram, excepto de quando ando ausente, devo-os ter todos pois sou um fã.
Abraço.
Grata pela partilha do teu tocante texto!
ResponderEliminarSei que escrever é para ti um prazer e não temo que poises a caneta... e,se esta faltar,escreve com pena!