O barlavento algarvio foi um Tempo. Agora tudo mudou. O comboio era ronceiro e de muitas paragens. As pequenas carruagens de um verde esmorecido, atrelavam umas nas outras, como num brinquedo de menino. Em várias das janelas – pequenos cubículos - o rosto alegre de algumas crianças. Depois da longa viagem, ao passar no apeadeiro da Meia Praia, com o areal a espraiar-se para o mar, olhávamos a tez branca do casario da cidade. O comboio apitava, exultante talvez da chegada, depois de tantas horas de carril. A estação era despida de gente. Mas tinha um relógio negro de ponteiros aguçados, que pautava as horas do caminhante. A cidade era, naquela época, quase proscrita. Os turistas e veraneantes preferiam o sotavento algarvio das águas mais cálidas e do calor abrasador. E maldiziam o vento lacobrigense. Porém, esse Tempo passou. Do romântico comboio, apenas é igual o balanço dos carris. As crianças são poucas ou nenhumas. A mala de viagem ou o cesto do farnel são agora substituídos por mochilas encardidas e sujas de tanto caminhar. E as crianças são agora jovens maioritariamente estrangeiros, com o corpo sulcado de tatuagens e de chinelas nos pés. Esfregou as mãos de contentamento a urbe e o seu comércio tradicional. Chorou e chora quem privilegia o sossego das tardes calmas e das noites na penumbra das ruas estreitas. Derrubou-se a muralha de uma cidade acantonada no seu reduto e no respeito dos seus costumes ancestrais. As vivendas e os prédios floresceram como cogumelos. Abriu-se uma Caixa de Pandora que nunca mais se fechou. Transformou-se a cidade e rasgaram-se avenidas. Construíram - se supermercados e abriram-se agências bancárias. Dos destroços, salvaram-se meia dúzia de traineiras, porque o mar generoso é ainda profissão de alguns e a asseada praça do peixe o bastião das raízes da linda cidade costeira. Pela mão do homem, Lagos vive hoje as vantagens e inconvenientes de um suposto progresso. A cidade está mais viva e alegre. Mas preocupa no que respeita à cobertura hospitalar em caso de uma urgência, por exemplo. Contudo, é de aplaudir o esforço da edilidade na limpeza da área urbana, logo que em época estival a população cresce exponencialmente com a chegada maciça de forasteiros.
Mas se o homem se pode vangloriar das muitas conquistas nesta
antiga cidade muralhada no seu encanto de terra de traços medievais, jamais
conseguirá argumentos para desvirtuar e contrariar a História, de combater o vento
sussurrante que empurrou um povo quinhentista para a saga heróica dos mares
nunca dantes navegados. Hoje, olhando estas praias do barlavento algarvio, logo
se constata que o veraneante se reconciliou com a matriz da Dança do Vento nos
palmeirais. A mim, que com ele dialogo há várias décadas, que tantas vezes fiz
dele meu dileto companheiro em tardes de reencontro com a minha própria
identidade, é reconfortante ouvir em noites fechadas o seu uivar vindo do
ventre do oceano, ou a sua mão leve e amiga a bater-me na vidraça de mansinho,
na carícia histórica de um Vento perene. Serão talvez as Velas do Infante a
chamar por mim.
Q.P.
Chegaste!UFA!
ResponderEliminarEstava a esbracejar sozinho neste encapelado mar bloguista!
Do Canadá há pausa, que espero seja breve, o que será bom sinal!
Boa postagem, mais uma do "Teu Algarve", ou melhor do "Tua Lagos"(que não é bem a mesma coisa....
Um bom retrato do que era Lagos há décadas e que é hoje.
As diferenças são muitas e que aqui descreves com a mestria do costume.
Que tenham sido umas boas férias(mais umas...) e que desta vez tenhas molhado os pés. Se o fizeste foi porque o Miguelito te obrigou...Ou será que a São tomou conta dessa missão?
Beijo e abraço para os dois!
Só tu Sr. Quito Pereiral, me fazias vir aqui dar-te um abraço por este maravilhoso texto.
ResponderEliminarQue tenhas muitos anos de escritura.
Da Gruta 5 do Mont Sinai, estábulo 380, cavalariça 3, argola 1.
Aí vai mais um abraço.
Com grandes dificuldades de Net, consegui ontem postar um dos meus 11 textos que tenho para o Encontro de Gerações. Ontem a Net deu-me carta de branca, mas logo notei a ausência tua Chico ! O texto teve pelo menos o mérito de voltares. A ti Rafael o meu abraço ainda cá de baixo. Agora que o meu Miguel rumou a norte com todos os condicionalismos de tratar de uma criança de tão tenra idade, posso dizer-vos que ontem entrei oficialmente de férias sem preocupações de marcar datas para regressar a norte. Vantagens de um reformado.
ResponderEliminarUm abraço aos dois
Isto foi um ar de graça. Vai demorar um bocadinho para voltar ao normal, pois canso-me só para escrever um comentário. Depois volta tudo ao normal e com muita "pujança". Abraços.
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