São seis e trinta da manhã. Num
ritual diário, sento-me na varanda alta do meu conforto e olho a cidade pintada
de branco. Espraio os olhos pelo mar calmo mas ainda envolto numa neblina que,
apesar de tudo, me deixa ver este ou aquele batel de pesca ao largo, ainda que
de uma forma indistinta. Lá em baixo, do meu lado direito, está uma porta
aberta. É a porta lateral da padaria, ainda a fabricar o pão e os bolos que
servirão as casas e restaurantes da cidade e arredores. De vez em quando, um
dos padeiros vem cá fora com o seu barrete na cabeça, bata branca e uns socos
nos pés. Agora que o serviço já ganha forma, fuma tranquilamente um cigarro. A cidade, naquela hora, é ainda um regaço de
paz. Apenas as gaivotas fazem uma enorme gritaria e voam em círculos largos e
abrangentes, na procura de alimento. Lá longe, onde o mar se escoa na linha do
infinito, há um clarão alaranjado e belo que já faz pressentir a chegada do
astro – rei. Vem em silêncio, como todos os dias, e rapidamente começa a subir
no céu. É então que a cidade se torna mais clara e as coisas mais distintas. Ouvem
– se timidamente os estores das janelas a abrir. O som límpido do silêncio e do
piar das aves torna-se agora incaracterístico e misturado com o barulho sujo
dos carros a gasóleo que iniciam a lufa - lufa do dia. Já passa das sete da
manhã. Algumas carrinhas comerciais lançam âncora junto à porta da padaria. Em
tabuleiros próprios para o efeito, os bolos e o pão são agora transportados e
distribuídos pela cidade. Da padaria exala um cheiro intenso, sobretudo das
enormes Bolas de Berlim com creme e que vejo passar aqui de cima – a perdição
de um qualquer mortal. São agora sete e trinta da manhã. Guiando devagar no seu
pequeno carro ligeiro, olho o Senhor João. Conduz de cabeça levantada e o peito
descaído sobre o volante, como que a tentar adivinhar os obstáculos da estrada.
Vagarosamente, arruma o carro. De camisola branca, calções e sandálias a
defender-se deste verão quente, mete a mão ao bolso e tira a chave com que abre
a porta do seu estabelecimento – a tabacaria e loja dos jornais. Entra para
logo sair e aguardar pacientemente a chegada da carrinha que vem sempre
apressada. O rapaz novo estaciona num chiar de pneus frenético , tira de lá um monte de jornais
que leva para a loja, para depois recolher as sobras do dia anterior, que já
tem à porta da tabacaria presas por uma guita e que atira descuidadamente para
o fundo da furgoneta. Depois parte, com a mesma velocidade com que chegou,
porque há muito quilómetro para cumprir. Então, porque já observei, o Senhor João
começa o seu ritual de conferir o número de jornais que chegaram e verificar se
coincide com a guia de entrega. Faz tudo meticulosamente, e na grande estante
distribui então os diários para que o cliente escolha. O espaço é airoso e tudo
é harmonia naquele pequeno comércio familiar de pai, mãe e filha. Nota-se
naquele estabelecimento, o dedo feminino da arrumação e o gosto na exposição da
variada mercadoria, e que visito diariamente na compra dos meus jornais. Também
frequento o café que igualmente é padaria, onde por vezes tomo o meu pequeno –
almoço, a rezar para não me tentar pelas Bolas de Berlim. Por volta das oito da
manhã, oiço o bater de uma porta do pequeno prédio do lado esquerdo do meu
pedestal. Vejo uma senhora nova que entra apressada no seu carro, ainda a
mastigar um bocado de pão. Veste formalmente e leva uma lancheira na mão.
Deduzo e apenas deduzo, que se deslocará para o seu local de trabalho e que
leva ali a sua refeição, que o salário não dá para almoços diários em restaurantes.
Menos formal no vestir, um homem que sai de outra porta com três cães pela
trela, que, plenos de felicidade, vão correndo no relvado numa ânsia de
liberdade e aproveitam o tronco de uma outra árvore para cheirar, alçar a perna
e satisfazer as suas necessidades orgânicas.
Agora, apesar de cedo, um sol
glorioso e acolhedor inundou a cidade. E a cidade acordou e agradeceu a dádiva
generosa da imensa claridade, na labuta incessante dos dias.
Q.P.
A Net permitiu e o texto saíu na perfeição!
ResponderEliminarCom que então o toque de levantar era às seis e meia da madrugada!!!
Mas foi só neste dia para espiolhar como se amanhece em Lagos!
Mas valeu a pena está tudo explicado como uma cidade começa a mexer para que tudo esteja pronto a funcionar!
Até o cão e as suas /dele) necessidades não escaparam!
Continuação de boas férias e...venham mais textos!
QUITO, vê là se arranjas coragem para ir substituir o Lobo Antunes na Revista VISAO!Estes teus textos sao muito mais intéressantes que os dele. Transpondo para a fotografia, faz-me lembra a relaçao que hà ente os Sistemas RAW e JPEG. Là nos concertos, devo ser um dos unicos (e raros) a trabalhar em JPEG. Com o sistema RAW, podes corrigir todos os defeitos, possiveis e imaginàrios. Quando vejo o resultado, digo-lhes "Desculpai mas nao vi isto quando là estàvamos frente ao Artista"!!!Utliso a dica "Tiro e queda"!!!Gosto sempre das tuas descriçoes de Vida! E do Algarve, so podia vir coisa boa!Grande abraço e boas férias!Bjinho à Sao!
ResponderEliminarSurpreendido de te ver por aqui, de Lagos para Colmar, vai um abraço para ti e para a Beth. Um resto de bom verão e felicidades ..
EliminarSem dúvidas que ficámos a saber que te levantas despois de nós, só que não temos a maravilha de ver o mar nem repararmos os vôos das gaivotas que as retiraram desta cidade pondo estudantes durante as férias a apanhar-lhes os ovos numa ilha aonde faziam a reprodução. A descrição do alvorecer da cidade com o retorno ao trabalho dos habitantes endormecidos assim como dos que estão em fim de terminar a labuta do dia anterior, é excelente de se seguir. Não deixas passar nada na tua descrição da vida do dia a dia, mesmo o passeio matinal com os cães que correm numa ânsia de liberdade para alçar a perna e satisfazer as suas necessidades orgânicas. Só que esta parte fez-me lembrar quando fazia bicicleta e tinha que me socorrer de centros de apoio como lhe chamava, para me livrar da "carga". Geralmente locais com várias casas de banho para o caso das que estavam ocupadas porque hoje a liberdade é total para voltar a estar convosco nos tempos livres, pois a reforma ocupa-me o tempo todo :).
ResponderEliminarGrato pelo tempo que pude usufruir com a leitura desta postagem.
Da Gruta 5 do Mont Sinai, estábulo 380, cavalariça 3, argola 0.
Um abraço.
Meu Caro Chico
ResponderEliminarEu é que te agradeço. Mas, para mim, relevante não é que tenhas lido o texto. Relevante é que abandones rápido a cavalariça 3, como tu próprio apelidas e que voltes para casa, junto da tua família. Esse é meu mais sincero desejo.
Um abraço
A maestria com que o Quito descreve pormenores nos faz imaginar cada cena. Consegui, pasmem, até sentir o cheiro dos pães frescos. Cada detalhe, meticulosamente observado por esses olhos de lince, é um prato cheio para guionistas.
ResponderEliminarBelo texto!