domingo, 17 de fevereiro de 2019

A CADEIRA ELÉCTRICA

Chamem-me Clark Gable!
Era assim que o Sequeira preferia que o tratassem...

Cabelo preto ondulado, meticulosamente empastado com “Brylcream”, risco a três quartos, um fino bigode preto bem desenhado por cima do lábio, compunham o busto cinematográfico que encimava a figura muito alta e quase esquelética do Sequeira, empacotada por uma bata branca de barbeiro, de irrepreensível brancura.
Como a bata não tinha sido feita à sua medida, ficava-lhe muito curta.
Mais parecia um bibe, sob o qual emergiam umas coçadas calças pretas justas, ao fundo das quais sobressaiam umas botas de sola de pneu com as biqueiras a apontarem para os lados, como as do Charlie Chaplin...

Exercia a sua profissão, como empregado, na barbearia do Bairro, mas estava muito longe, segundo se dizia, de ter a experiência profissional de um bom barbeiro.
Falava-se à boca pequena que cortava o cabelo às escadas, assassinando o mais perfeito penteado.
Dizia-se, que quem tinha o azar de cair nas mãos do Sequeira, se ia sentar na “cadeira eléctrica”, alcunha aliás que acompanhou o Clark Gable da barbearia do Bairro para o resto da vida.

Quatro clientes aguardavam, sentados, a sua vez de irem cortar o cabelo. Um, lia o Diário de Coimbra, dois outros conversavam com o Sr. Simões, dono da barbearia, e o Eurico, por sinal aquele que seria o próximo a ser atendido, mantinha-se calado e manifestava evidentes sinais de ansiedade e algum nervosismo. Não parava de apreciar o rapazinho que, como vitima no cadafalso, se encontrava recostado na cadeira reclinável e de cuja cabeça iam caindo no chão tufos de cabelo que a tesoura do Sequeira ia freneticamente desbastando.
Eurico rezava em surdina para não lhe calhar o Sequeira.
Mal por mal, preferia que fosse o Sr. Simões a cortar-lhe o cabelo.

Mas, despachado como era, e acabado o seu trabalho, o Sequeira recebeu o dinheiro do rapazinho e, de pente seboso numa mão e a tesoura ferrugenta na outra, brandindo os instrumentos como armas de arremesso, voltou-se para os clientes e perguntou, com voz melíflua:

- Quem é o próximo?
Eurico respondeu-lhe:
- Era eu, mas lembrei-me mesmo agora que tenho que ir à Baixa fazer uma coisa. Dou a minha vez...

Em uníssono, os outros três clientes, apontando o dedo ao Eurico, intimaram-no:
- Não, não! A gente não quer tirar a vez a ninguém! Você já cá estava antes de nós .Por isso, faz favor de se ir sentar na cadeira do Sr. Sequeira!

Sequeira, meneando-se, pediu:
- Meus Senhores, por favor! Chamem-me Clark Gable...

Rui Felício


NOTA: Agradeço ao Quito que ontem no almoço em que tive o prazer de estar à sua mesa, me falou desta personagem. Deu-me matéria para relatar este episódio.

NOTA ADM Reposição de postagem em 25-10-2010

3 comentários:

  1. Não conheci o Clark Gable, pois não era lá que eu cortava o cabelo. Quem mo cortava era o Sr. Tiago, que tinha a sua Barbearia no início da Ladeira das Alpenduradas, por baixo da casa onde nasceu o Álvaro Cunhal (pormenor que pouca gente de Coimbra saberá). O Sr. Tiago era uma excelente pessoa e um bom profissional. Quando apareceram os cabelos à Beatle, o Sr. Tiago teve, muito a custo, de se adaptar, pois começou a ver que a freguesia dos rapazes, estava a desaparecer. Só fui uma vez a um Barbeiro do Bairro. Não sei se seria o Sequeira, mas só sei que ele falava da vida de toda a gente e sabia coisas da minha vida que nem eu sabia!...
    Nunca mais lá fui.

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  2. A história de um bairro, também é o somatório de pequenas estórias. Das vezes que eu e o Felício nos juntamos em Coimbra ou na Ericeira, o nosso Bairro é sempre tema de conversa. Um dia falei-lhe do Sequeira e ele desenhou este engraçado texto. A forma como descreve o personagem do Sequeira é simplesmente genial. Depois, resolveu meter-me no elenco desta rábula de Parque Mayer. Verdade se diga, nunca fui vitima às mãos do Sequeira, mas lembro o nosso saudoso João Manuel Campante que, na sua bonomia e quando o Sequeira despachava mais uma vitima e dizia de pente e tesoura em riste ... que venha o próximo, fazia-se um silêncio inquietante. E o bom do João Manuel, com aquele seu corpo avantajado, levantava-se, abria os braços num sinal de desalento e com cara de vitima balbuciava : já que ninguém se OFERECE ... vou eu ! Depois de lá saiu do barbeiro no dia em que observei isto e, sejamos justos para com o Sequeira : o corte de cabelo ia artístico, a lembrar as Escadinhas do Quebra - Costas !
    Um abraço Rui !

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