Ribeira do Ocreza ...
Roda que roda, o meu carro corre devagar ao encontro do
silêncio das montanhas. Uma reta breve que bem conheço sobe ligeira até ao
planalto, para depois a estrada afundar num vale, numa dança ao sabor das
linhas de água. Acolá, vislumbra-se um pequeno pontão e, por baixo do pontão,
em saltitante convívio com as fragas, as águas cristalinas da ribeira do
Ocreza. Também uma cruz, firme numa base
de cimento, a recordar um acontecimento trágico das armadilhas da vida. Ao lado
do pontão, uma casa. Uma casa velha e degradada. Tem as portas sempre fechadas
e é quase um mistério. Não se vê vivalma mas, ao olhar as traseiras da
habitação de madeira, vislumbra-se um estendal de roupa multicolor a secar ao
vento e pressente-se que ali vive gente. Ao lado da roupa, jaz uma velha
carrinha que é um hino à ferrugem. A casa, porém, tem uma história que se perde
nos tempos. Por ser feita de tábuas, foi batizada de tabuinhas. Foi taberna,
que era o oásis dos que vindos das aldeias a ganhar a jorna na cidade, ali
paravam para beber um copo de vinho na caminhada que ainda faltava para o
destino albicastrense. Era, para muitos, uma peregrinação diária de cerca de
trinta quilómetros a pé, se contarmos a ida e o retorno. Diziam alguns, que
também por ali passavam mulheres da vida, uma versão pouco consistente. Deixar
o Tabuinhas e subir o vale até novo planalto. Virar à direita por uma estrada
estreita, olhar algumas vivendas dispersas e continuar a rota de todas as
lembranças. Quantos dias por ali passei. Quantas noites de inverno com a chuva
a varrer a vidraça do pequeno carro. Quantos fins de tarde na taberna do João,
rodeado de gente simples. Então, enquanto os copos de vinho se iam alinhando no
balção de granito, eu falava. E eles, em sociedade fraterna, ouviam em
religioso silêncio e achavam que eu era o poço de sabedoria que não era. Que eu
era o rei que não era. Um rei sem trono. Eles, o João, o Morgado, o Rosa, o
Calmeiro, o António e o Joaquim que eram irmãos e outros tantos, que tiveram
vidas difíceis e cheias de obstáculos, de privações e canseiras, é que eram os
meus catedráticos da vida. Sabiam do tempo, sabiam das sementeiras, sabiam
distinguir o voar do gavião do planar de uma águia e do cantar pleno de um
rouxinol. Sabiam da natureza e das coisas importantes da vida. Por isso, no dia
em que parti porque eu era um deles, vi olhos baços e rostos de emoção.
E eu hoje, aqui e agora, sentado neste muro olhando o Moradal,
já só oiço o silêncio do jorrar da água na fonte centenária. Inspiro o ar
fresco campesino que me entra nos pulmões e relembro o passado nesta ausência.
E ao deambular por aquele tempo de concórdia e pela aldeia singela de Freixial
de Campo, o meu coração diz – me que por eles fui estimado e que a todos honrei. Porque eu gosto da gente simples.
QP
Na descrição inconfundível do Quito ficamos situados na taberna do tabuinhas, ponto de passagem depois de um dia de trabalho a ganhar o sustento.
ResponderEliminarAqueles homens simples ouviam as preleccoes do Quito com um reverêncial silêncio porque encontravam nas suas palavras a sabedoria que lhes escapava.
Mas o Quito apressa-se a desfazer o equívoco enunciando algumas das verdadeiras e sábias experiências de vida daqueles homens simples.
Eles sim uns verdadeiros sábios. ..
Porque sábio é aquele que aprende com o saber dos outros desvalorizando o seu próprio saber...
Muito se aprende com o Quito Pereira...
Caro Rui
ResponderEliminarDesfazer um equivoco: o Tabuinhas fica sensivelmente a meio caminho entre Castelo Branco e o Freixial do Campo. A Taberna do João é no Freixial. Escrevi: deixar o Tabuinhas e subir o vale até novo planalto. Virar por uma estrada estreia (...)
Obrigado pelo comentário. Sempre que percorro a estrada 111, de Castelo Branco para o interior, o Tabuinhas, que parece um barracão frágil, lá vai resistindo ao tempo. Apenas não resistiram já muitos dos com quem convivi. Ficou a memória.
Um abraço ...
Ainda em complemento do texto: o Tabuinhas já no meu tempo estava fechado. Era na tasca do João no Feixial do Campo, que eu me reunia com aquela sociedade. O Tabuinhas ficou como baluarte de tempos de grandes dificuldades e miséria. O tempo de viajarem a pé para ganharem a jorna. Porém, naquelas épocas recuadas de 40 e 50 do século passado, um homem de nome Manuel Pedro da Silva, montou num barracão em Salgueiro do Campo, uma loja onde vendia bicicletas. As conhecidas "pasteleiras", muito pesadas. Alguns, de dinheiro amealhado e outros a prestações, compravam bicicleta para se deslocarem a pedal para o trabalho em Castelo Branco. Mas eram poucos e a bicicleta passava a dar ao seu proprietário um outro estatuto. Eram "ricos" em relação aos que tinham que se deslocar a pé. A estrada era acidentada e de mau piso, com muitas subidas e descidas, o que exigia muito esforço físico, mas com grande poupança de tempo. Afinal estórias que o Manuel Pedro da Silva me contava e que também ele penou pelos poços das Minas da Panasqueira . Mas isso são outras recordações pardas ...
ResponderEliminarO Quito continua a brindar-nos com excelentes textos.
ResponderEliminarÉ mais uma vez sobre a sua experiência vivida nas cercanias de Castelo Branco, onde viveu vários anos, percorrendo montes e vales prestando-se à entrega dos medicamentos adquiridos na farmácia que era da sua esposa São Vaz e que os doentes não tinham possibilidade de se deslocar.
E era nestas deslocações fosse verão ou inverno que se encontrava com os fregueses de tabernas que conversavam,e lhe admiravam a sua maneira sábia de falar.
Com o andar dos anos a desertificação desses lugares tornava menor as pessoas com quem partilhar dois dedo de conversa.
Fica a saudade desses tempos e a lembrança desses amigos...
Em TEMPO"TORNAVA MENOR O NÚMERO DE PESSOAS"
ResponderEliminarSerá que eu também vivi também conheci o Joaquim, o António, o Morgado, o João?!...
ResponderEliminarDou por mim a ver essa gente toda e até me vejo a conversar com todos eles no Tabuinhas.
Os textos do Quito têm a grande virtude de nos integrar naqueles ambientes, de conhecer aquele povo e até a beleza da paisagem.