Era um homem solitário. Vivia sozinho, num quarto sombrio e
acanhado da cidade. Todos os dias subia a calçada a passo, olhos fixos no chão,
meditabundo. Por detrás de uma secretária passava os dias, escondido por entre
uma pilha de papéis. Apesar do seu modo de ser introvertido, todos os
companheiros de trabalho gostavam dele. Aquele sorriso brando, a ligeira vénia
com que saudava os colaboradores, granjeavam-lhe simpatia. Engenheiro de
profissão, nunca a sua voz se alterou, em acesa discussão com ninguém. Era
cordato por natureza. Mas tinha um mistério. Todos os dias – todos os santos
dias – depois da hora de encerramento do escritório, fechava-se num
compartimento a sete - chaves. Foi assim, durante seis meses. Um dia,
confidenciou a um amigo, o que tanto intrigava a todos. Num fim de tarde,
convidou o companheiro de trabalho a visitar a sala onde se encerrava até ao cair
da noite. E foi ali, que lhe revelou o seu sonho: construir um barco. Em cima
de um estirador, repousavam réguas, esquadros, transferidores, compassos, lápis,
borrachas e canetas. Além de revistas da especialidade. Debruçado sobre a
prancha de madeira, com a ponta do lápis riscando sobre o papel, dava azo à sua
imaginação. Depois, regressava ao quarto modesto, onde, pela internet,
contactava o mundo. Foi assim que conheceu Regina, brasileira do Estado do
Ceará. No início, trocaram apenas palavras de circunstância. Um dia, ela
revelou-se-lhe e falou-lhe de amor. Incitava-o a ir ter com ela. Que o
receberia de braços abertos e beijos ardentes. E aquele homem introvertido e
solitário, via abrirem - se - lhe na vida dois caminhos: ficar na terra onde nasceu,
agora que estava a um passo da reforma, ou viajar para os braços da sua amada. Numa
noite mal dormida, teve um impulso: partir, levando na bagagem o desejo
ambicionado. O esboço acabado do barco confortável que tinha projetado e queria
agora mandar construir. E onde, com ela, passaria a viver, galgando as ondas da
extensa costa do Brasil. A vertigem de uma gôndola de paixão e uma cabana. Um
delírio de amor. A roçar as seis décadas e meia de vida, moveu influências para
passar à reforma. Conseguiu. E um dia, com uma mala na mão, cheia de ilusões e
de esperanças, partiu. Mas, rapidamente, aquela ode de desejo se desvaneceu. A
Regina, era ainda uma adolescente insegura, muito mais nova que ele. Foi mútuo
o desencanto. Pouco ou nada conviveram. Durante muitos meses, vagueou por
terras de Vera Cruz. Ao telefone, confidenciava ao amigo que se sentia muito
só, não conhecendo ninguém, num país que não era o seu. Voltou. Há dias,
encontrei-o numa rua da cidade. Sempre o sorriso afável e cordato.
Confidenciou-me, que agora vive num Lugar minúsculo, encravado entre montanhas,
no interior da Beira Baixa. Numa singela propriedade que tem, convive com as
abelhas, o seu outro amor. De máscara e fumigador na mão, vai tratando dos
cortiços e das colmeias, com um olhar vago, perdido de desencanto. A pensar,
certamente, na utopia que foi aquele barco de um amor infeliz, que um dia
naufragou irremediavelmente e para sempre, ao largo de Copacabana.
Q. P.
O sonho inconfessado é, para quem o guarda ciosamente para si, um verdadeiro farol de uma vida.
ResponderEliminarPorém, cai como um castelo de cartas quando transborda da intimidade do seu dono e é revelado publicamente.
Porque a armadura que o segura acaba por estilhaçar quando exposta à dureza da vida real.
Desta vez, o Quito Pereira conseguiu prender me a atenção até ao fim mantendo o suspense em cada frase que acrescentava.
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Não resisto a contar a história de um sonho parecido, também passado com a construção de um barco.
Durante mais de dois anos, em absoluto segredo a que nem a família teve acesso, o Felisberto funcionário camarário, fechava-se todos os dias depois do trabalho no sótão da sua casa no Entroncamento.
Ali ia, paulatinamente construindo com amor o seu pequeno barco de cinco metros.
Um dia, acabada a obra, convidou as altas figuras da terra para assistirem à sua inauguração para em seguida levar o barco no atrelado do carro para a barragem do Castelo do Bode.
No sótão recebeu os convivas a que orgulhosamente ofereceu um beberete.
Só então se lembrou que o barco não cabia nas portas da moradia.
Foi preciso pedir aos Bombeiros para destelharem a casa e trazerem o barco para a rua pendurado numa grua....
Este acontecimento distante, aconteceu. Vivi-o de perto e entre os cerca de 200 funcionários daquele prédio de 8 andares, apenas eu sabia daquela loucura. Tentei demover o meu amigo daquela utopia, mas não consegui. E foi o fracasso anunciado. Telefonava-me do Brasil, desalentado. Mas voltou e refez a sua vida, vivendo sozinho numa quinta. Espero que esteja bem, pois nunca mais o vi. Naturalmente que tive a preocupação de preservar a sua identidade.
EliminarTinha feito um comentário, mas uma avaria técnica levou-o.... Vou ver se o consigo recuperar... Mais ou menos
ResponderEliminarUma estória que nos prende mesmo até ao final.
ResponderEliminarUma solidão vivida na esperança de construir um barco, que deveria ser uma realidade depois do projecto concluído, mas as tecnologias modernas com uma paixão amorosa à distância o levaria para o Brasil, onde concluiria em paralelo o sonho do seu barco. Mas o po#ivel amor encontrou um grande revés... Nem amor nem barco, mas um regresso às suas origens e dedicar-se a uma nova vida mais campestre...
O belo texto do Quito teve uma Resposta não menos interessante por parte do Rui Felício com um conto o qual, como lhe é característico, teve um final imprevisto... e desconcertante!
ResponderEliminarUm obrigado repartido pelos dois