Tavira - Homenagem ao soldado ...
Maldito comboio. Maldito comboio de forçados, como em tempos passados. Maldita gente que nos fez caminhar a passo e em filas de dois pelo
ventre de Lisboa, em direção ao Barreiro em rota para o Algarve. O povo de
Lisboa, estático nos passeios, olhava-nos em silêncio, contristado. E nós ali,
em passo lento, a beber daquela humilhação. Depois o comboio. O tal comboio.
Apinhados como gado e mochilas pelo chão. E um Inácio qualquer, capitão de
carreira, o chefe da manada, a passear pelos corredores da composição na vigia
daquele mar de fardas verdes. Tinha pouco que vigiar. O cansaço físico e
psíquico a apoderar-se de nós, fazia com que muitos soçobrassem ao sono.
Cabeças pendentes no ombro dos camaradas de armas e as bocas disformes e
babadas em cenário grotesco. A noite a apoderar-se do Alentejo e, naquelas
retas sem fim, a composição gemia sobre o carril, como num choro de finados.
Num solavanco, o comboio parou. São três horas de uma madrugada sem rosto, e exaustos
entrámos naquele quartel velho de camaratas amplas e frias. Das camas em ferro
ordenadas em duas filas em enorme corredor, nem um cobertor de agasalho. Apenas
enxergas queimadas por fósforos nas pontas, na cata de piolhos. O resultado foi
dormirmos vestidos e transpirados, E eu, nem as rudes botas descalcei dos pés,
por causa do frio. Mas nada era feito ao acaso. Nada era inocente. Era preciso
refundir a alma mesmo dos mais brandos. Incutir-lhes um espirito belicista e de
desconforto e de revolta antes de partirem para África. Depois, as correrias
loucas pela Atalaia , a espingarda às costas que parecia pesar toneladas. E a
semana de campo, como acepipe de um cenário de guerra. Acampados lá para os
lados de Barranco do Velho, em noites de breu. Numa noite, numa noite de breu,
fiquei debaixo de uma figueira, abandonado, apenas com um rádio de campanha.
Cumpria um turno e vigiava o inimigo que não existia. De repente, caiu uma
enorme bátega de água e uma trovoada que iluminava os céus. Ali fiquei, tenso e
molhado até aos ossos, sempre na expectativa de que um raio me atingisse
naquele ermo. Quando amanheceu, apareceram para me vir buscar. O miliciano
prometido para me render, não apareceu. Era apenas um embuste. E ele, um tal
major, largo de galões mas estreito de caráter, a pressionar-me mais uma vez,
para que eu lhe pagasse um blusão de cabedal que lhe tinha sido furtado. Eu
seria então responsável por tudo, na vilania do seu pensamento, por estar de
serviço ao acampamento num dia pretérito. Mas o casaco apareceu, por
esquecimento dele numa tenda, e veio dirigir-se a mim. Vinha no passo gingão
que era seu timbre, num discurso formal e formatado na lógica militar. Não teve
a hombridade de tirar os galões e, de homem para homem, reconhecer o erro. Por
isso não lhe aceitei as desculpas e remeti -me a um silêncio reprovador e rosto
fechado. Enfrentei-o mesmo do alto dos seus galões. Olhou-me nos meus olhos
frios e zangado partiu. Daquele inferno, valeu a noite em que sete de nós nos
perdemos numa missão noturna, de mapa da região e uma pilha na mão. Uma porta
aberta, um pequeno clarão na noite e o conforto de uma taberna. E ela, a
velhota de avental, condoída com aquele nosso destino, a oferecer-nos vinho
tinto e pão com chouriço. Ela, que vou batizar de Almerinda porque não lhe
conheci o nome, não tinha galões de major. Mas trazia nos ombros curvados, a pompa
de um general de muitas estrelas. De general da fraternidade e da
solidariedade. Quanto ao tal militar, lembro - me bem do seu nome e da ofensa. Omito
– lhe agora, deliberadamente, o respeito da patente, mas ficou-me uma reflexão para
a vida - nunca o luzidio brilho de uns galões, são passaporte que baste para a
grandeza de um caráter.
Q.P.
Episódios da vida real passados na vida militar.
ResponderEliminarUma estória bem romanceada que prende do principio até ao fim.
Também fiz um tempo de tropa com a perspectiva de ser mobilizado, no meu caso para a India. Felizmente escapei "por um".
Obrigado por mais este texto.
De nada, Rafael. Escrevinhei um texto de homenagem póstuma a Octávio de Matos. Vai sair a seguir à tua próxima postagem, pelo que a semana fica mais ou menos garantida e não terás que te preocupar. Ainda tenho aqui uns textos de reserva se o relógio emperrar ...
EliminarPerfeito!... Revivi algumas cenas, principalmente da viagem de comboio que também fiz.
ResponderEliminarSó como curiosidade, Tavira, nessa altura, não tinha Liceu, mas tinha 26 igrejas e capelas e um quartel...
Na noite em que chegámos ao Quartel, assim que se apagaram as luzes das camaratas, os percevejos e pulgas eram tantos que viemos dormir ao ar livre, debaixo do telheiro que havia em frente às camaratas. No dia seguinte, meti um papel a pedir que me fosse autorizado dormir fora do quartel, pois queria continuar os estudos. Fui autorizado e não mais entrei nas camaratas.
Pois, deram - me a faculdade de ter um quarto cá fora e também aproveitei. Era do outro lado rio e havia por lá muitas moçoilas namoradeiras. Mas não cheguei a ter que casar à força na parada do Quartel ...
EliminarRealmente havia 26 igrejas e a Ti Almerinda das bifanas dizia-me pragmática encostada ao seu carro das laranjadas e dos pirolitos: temos 26 igrejas, só não há quem reze ...
Há pois. Em Vendas Novas dormia no Quartel... Mas tinha em pareceria com um amigo um quarto para desanuviar todos os dias e nos fins de semana. O pior eram os cortes de fins de semana por maus comportamentos na caserna à noite. Apanhava por tabela...
ResponderEliminarA lógica militar aqui explanada com o habitual rigor do Quito Pereira.
ResponderEliminarVeio-me de imediato à memória um episódio ocorrido na Guiné.
Como alferes mais antigo dos dois grupos de combate destacados naquela operação de segurança a um desembarque de fuzileiros no rio Geba, era a mim que estava atribuído o comando da companhia reduzida.
A cerca de três quilómetros à nossa esquerda progredia uma outra companhia, esta completa, comandada por um capitão do quadro permanente.
A meio da operação recebi uma mensagem rádio enviada pelo major que tinha ficado no quartel, informando que teríamos que ficar mais um dia emboscadas junto à margem do rio, dado que os fuzileiros tinham adiado por um dia a sua vinda.
Claro que o Capitão da outra companhia também deve ter recebido igual mensagem mas fingiu não a ter recebido e estacionou mais um dia, não junto ao rio mas na mata a escassos 500 metros do quartel.
Entretanto no dia anterior tivemos uma flagelação do inimigo a que respondemos tendo feito dois prisioneiros.
Já no quartel o tal capitão chamou-me para me ouvir num auto que o Major mandou realizar.
Criticou-me por ter feito fogo denunciando a presença da tropa, explicando que teria sido fazer como ele fez.
Ou seja, ficar calado e reposicionar a companhia.
Argumentei como pude. Na altura nós tínhamos só dois meses de comissão enquanto o capitão estava a dias de terminar a sua.
Nunca soube no deu o auto, mas provouz-me o que eu já sabia.
Que na tropa tentam sempre tentar partir a corda pelo elo mais fraco...
Pois era e é. O varrer de responsabilidades.Para os que tiveram a felicidade de não passar por isto, estas recordações são velhas e bolorentas. Mas quem andou por cá e por lá (leia-se África) a arrastar as botas e a existência, será sempre um passado presente. Nós, vitimas de uma conjuntura politica, não somos uma tribo de ex - combatentes metidos à força numa reserva, como os indios americanos, com total desrespeito por um passado ancestral daquele povo tão particular. Queremos o respeito que a Nação nos deve e jamais calaremos a arma do aparo afiado da caneta, mesmo que para enfado de uns e indiferença de outros ...
ResponderEliminarDisseste tudo
EliminarQuantas histórias ricas. Ricas histórias.
ResponderEliminarEu bem que vararia a noite a ouvir cada uma...