terça-feira, 9 de abril de 2019

AQUELE ALENTEJO ...





Estremoz ...

Ainda hoje não consigo entender muito bem se andei no exército ou se penei na tropa. Exército tem outro estatuto, a lembrar fardas de cerimónia e bonés com adereços dourados e espadas de Cavalaria. Um dia vesti de cerimónia, com um casaco e um boné todo catita que nada tinha a ver com aquela boina castanha que parecia um disco voador. Mas fiquei mal na fotografia tipo postal para o meu bilhete de identidade militar. Também não era de admirar, que o casaco era sempre o mesmo para todos vinte ou trinta mancebos que estavam atrás de mim na fila. Fosse gordo ou magro, o casaco tinha que servir para a função, ficasse tipo bóia de praia para os mais magros ou colete de forças a rebentar pelas costuras para os mais gordos. Foi apenas nesse breve instante da fotografia que tive um estatuto dourado. De resto, manda a minha honestidade dizer que andei na tropa. Não frequentei messes com senhoras da sociedade a abanar leques coloridos e a ouvir um qualquer capitão a tocar num piano desafinado. Muito menos de beija - mão como manda a regra da etiqueta. Andei por bares, tabernas  e casas de pasto, onde se comia e bebia mais barato. Sem punhos de renda ou outras mordomias.  As toalhas de mesa eram de plástico, com quadrados azuis escuros e outros mais claros, que davam ao local uma identidade sem equívocos – tasca. Mas o vinho era bom e a Dona Alice de Estremoz, que tinha uma taberna lá num cantinho escuro, fazia um ensopado de borrego de fazer sorrir um morto. E eu, repimpado num banco de madeira mais o Roxo que era estremocense de nascimento e sargento de carreira, a mastigar aquele manjar. Vinha mais borrego e mais vinho. E pão com côdea a estalar de quente. Depois girávamos à vida, até porque nenhum de nós dormia no quartel. Eu, a cantarolar um fadinho de Coimbra, ia para o meu quarto alugado mais leve. Já ele tinha tarefa mais pesada, que era explicar à mulher porque tinha chegado a casa àquela hora a cheirar a mosto e uma barriga de tambor que não iludia a jantarada. Mas nada que nos arredasse de na alvorada seguinte nos perfilarmos de continência ao hastear da Bandeira Nacional. Mas primeiro estive em Beja. Foi um degredo. Muito calor e comia no quartel. Manda a verdade dizer que as refeições nem eram más. Mas faltava aquele compromisso de rua com outros camaradas de armas, à procura de um abrigo à sombra onde conversar e confraternizar fora do ambiente do quartel. E havia aquele papel odioso que se chamava “dispensa de recolher” que marcava a ditadura de um horário para cruzar a porta de  armas de meninos obedientes, como  de fossemos todos um bando de meninas virgens vigiadas pelo pai austero. De Beja, só me lembro de ter passado numa rua e ter olhado para uma vivenda e um habitante de lá me dizer de dedo indicador espetado como se me apontasse o Mosteiro do Jerónimos … olhe ali naquela casa mora a Antónia Tonicha !!! Uma semana depois parti. Nas voltas da tropa, um dia fui então tropeçar em Estremoz. Hoje recordo o Roxo com saudade, até porque já partiu como alguns outros. Ficaram - me na retina, no olfato, nos ouvidos e no paladar, as planícies silenciosas do belo Alentejo, o vinho e o borrego da tasca da Alice e esse enfermeiro maluco chamado Azevedo,  que era natural do Porto e que na pia da enfermaria onde depositava as seringas usadas que eram de vidro para depois as desinfetar em tachos de alumínio com água a ferver , também lavava os legumes que depois comia com atum e sobreviveu ! Mas é irrelevante. Aquele casqueiro alentejano a estalar – me na boca e aquele tinto encorpado a rezar- me na garganta desculpa tudo !
QP       

6 comentários:

  1. Pois!... Também não sei se andei na tropa ou no exército cumprindo o serviço militar obrigatório!
    Também não tive farda de gala, nem para a fotografia!..
    Quando podia, tanto cá como no outro lado do planeta, que diziam também serem terras portuguesas, comi sempre bem. Tudo boas recordações...
    O único sargento que conheci que comia bem (muito bem) foi no barco, tínhamos mesas de 8 lugares e a sobremesa, quando era pudim, que deveria ser para 8, o empregado de mesa perguntava-lhe: O senhor sargento quer todo ou só metade?...

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    1. Fiquei curiosa: o que o "senhor sargento" respondia ao empregado de mesa?

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    2. Quando estava bem disposto, respondia: Pode ser só metade, a outra metade divida pelos restantes 7. Estando menos bem disposto: Traga outro que este é todo para mim...

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  2. Não hà nada como recordar tempos passados e que nos marcam para sempre.
    Pelos vistos Estremoz foi um tempo de passagem para outras margens...
    Nessas as recordações serão outras...
    Eu também pensei em tempo de tropa... Mas uma tropa fandanga!

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  3. "...como de fossemos todos um bando de meninas virgens vigiadas pelo pai austero..." acabei-me de rir, a imaginar se fosse o Quito uma dessas!

    Mas, deixem-me dizer umas (in)verdades: é nos porões que acontecem as melhores festas. As coisas da vida muito regradas...nada de graça elas têm.
    Certamente se vocês estivessem no "andar de cima", agora estariam a vomitar a injustiça ingerida, porque certamente a consciência estaria a lhes cobrar atitudes mais...nobres.
    Posto isto, contentem-se: vocês participaram da melhor parte de tudo.

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