Vou partir. Levo na minha mochila de caminheiro as palavras
ausentes que me faltam neste calcorrear de vales e montanhas, que se
espreguiçam indolentes no pasmar dos séculos. Porque elas - e apenas elas, as
palavras ausentes - me falam dos caminhos que vigiam os meus passos perdidos. Eles,
estreitos e escuros, olham - me do eterno crepitar do Tempo. Resistiram ao
penoso caminhar dos anos. É o seu silêncio soberano que me acorrenta o
pensamento e me tolhe a alma. Passo a passo, como que a medo, percorro a aldeia
soturna. Olho as portas cerradas e abandonadas ao estertor do encadear dos dias
que passam. Sentado no regaço de pedra da fonte centenária, relembro com
respeito e saudade o esplendor de tempos de antanho, quando o sol radioso de bonança
brilhava no céu beirão e entrava pelas portas e janelas da aldeia plena de vitalidade
e de cor. Agora tudo morreu. Apenas portas fechadas. Apenas janelas fechadas.
Apenas um vento agreste que varre as ruas despidas de gente e de vida. Ali,
naquele pátio modesto, já nem adivinho sequer o bater vivo e ritmado do martelo
na loja do ferrador. Acolá, aquela nora carcomida pela ferrugem, foi tragada
por um monte de silvas e ervas daninhas. Jaz agora inerte, na solidão dos dias
emprestados. No chão, em redor do poço que trazia a água que é o alimento da
terra, apenas pesquiso, na rota batida e ressequida, indícios do caminhar
paciente do rocinante no labor das manhãs de rega. O ecoar metálico do sino,
fere o silêncio da aldeia e percorre, em vagas sonoras cada vez mais esbatidas e
distantes, as léguas de vastidão do vale. É quando a tarde já resvala para a
escuridão da noite, que aquele lago adormecido em paz ganha algum movimento.
Das casas, das pequenas casas, como por mistério, as portas gemem devagar nos
gonzos e, em surdina, amparadas nas bengalas ou envoltas no xaile negro que é a
manta que envolve o luto da alma, as mulheres idosas, de olhos postos no chão e
rosto austero caminham em direção da pequena igreja de paredes imaculadamente
brancas para ouvirem a Palavra do Senhor dita num murmúrio de muitas vozes,
quase um velado queixume.
São as labaredas da alma de gente simples e sofrida. São vidas
ausentes, ditas por palavras ausentes …
Q. P.
Aqui fica Fernando, como pediste. Um abraço ...
ResponderEliminar"quase um velado queixume", como a dizerem ao Senhor que suas orações se tornaram secas, um deserto...e já não passam de frases repetidas...numa adoração incansável e, quiçá , apenas por temerem castigo, se não feitas.
ResponderEliminarChama a Mamãe, respeito a sua interpretação, mas queixume aqui significa apenas vidas sofridas e as preces na esperança de uma vida melhor. não como um Deus "vingativo" se as orações não forem feitas.
EliminarNão me fiz entender, pelo que peço desculpas, até porque também não creio num Deus vingativo, mas, sim, bondoso e infinitamente misericordioso. Eu que o diga!
ResponderEliminarMais uma vez...desculpe-me.
Um perfeito retrato do que está a passar nas aldeias do interior do nosso país.
ResponderEliminarOs anos passados em Salgueiro do Campo e outras localidades vizinhas, percorrendo muitos e muitos KM, permitiram-te conhecer bem de perto pessoas simples e os problemas que tinham.
ResponderEliminarfoste notando ano após ano como estes locais se iam desertificando, sendo por vezes que em pequenos estabelecimentos tipo restaurante ou simples taverna, as conversas eram sempre de queixumes de quem vivia em locais práticamente sem vida jovem e que os mais idosos o que tinham para contar eram quase sempre lamentos sobre o modo de vida já sem esperança.Mas foram amigos que ainda hoje recordas, e os locais que perderam alguma vivacidade que tinham.
Agora são as palavras ausentes que cada um deste lugares te vêm à memória.
Que belo conto que gostei de ler.
ResponderEliminarOs comentários que tanto aprecio.
O Quito podde continuar a escrever eu vou lendo assim como os comentários Obrigado