De novo, regresso. Do bulício febril da cidade Coimbrã ao
ocaso do Tempo são pouco mais de duas horas de viagem. Guio embrenhado nos meus
pensamentos. Lá ao longe, muito ao longe, já diviso a cripta da Serra da
Estrela. Agora que a neve partiu, ficou ainda uma alva cabeleira rala que se
derrama timidamente pela encosta. É a agonia do inverno no renascer da primavera. Farrapos de nuvens
brancas como algodão passeiam lentamente por cima do Moradal. Percorro agora a
estrada que me leva ao povoado da Lameirinha. Saio do carro e há um silêncio
que é um mistério. Um vazio que me sufoca e me perturba. Dentro do Café há
poucos sorrisos. A vida leva - se a sério. Desde cedo que a labuta nas courelas
que oferece o pão lhes endureceu o rosto. Uma máscara de sofrimento. Não
aprenderam a sorrir. É quase um sacrilégio. Guardam os sorrisos contidos apenas
para as épocas festivas, quando a concertina se passeia pela aldeia e o Santo é
levado num pequeno andor a percorrer o palco da vida de muitos para quem o
rendilhado austero do cume das montanhas é o limite dos sonhos. Para lá das serras
não existe nada. Só vagas quimeras. Do lado de cá desta fronteira da vida, apenas
o sabor acre da solidão. Almoço só, numa mesa encostada a um canto da sala. Na
vidraça da janela uma mosca voa batendo furiosamente contra o vidro, numa ânsia
de liberdade. É um zunido irritante que me acompanha durante a refeição. Vou
almoçando sem pressa, olhando a sala onde se sentam um dúzia de clientes que
sorvem a sopa de cabeça curvada sobre o prato, como quem cumpre uma penitência.
Reparo agora numa cartolina colocada em destaque sobre a minha mesa. Em letras
negras e cheias, tem a palavra “Reservado”. O David sempre que pressente a
minha presença entende dar-me um lugar especial. Ele sabe que eu gosto daquela
mesa para a refeição. E tem o cuidado de a guardar. Por detrás do seu rosto de
menino há um coração bondoso. E ele, que é arguto, também sabe quanto o estimo
pela sua educação e lição de vida. Depois da refeição parto, vencendo as curvas
da estrada. Dois quilómetros percorridos e sou tragado por uma floresta de
pinheiros. De novo o silêncio. Outra vez o mistério de uma aragem branda que
dança escondida por entre a copa das árvores. Parado na berma da estrada olho a
povoação de Salgueiro do Campo ao longe, alcandorada na crista de um monte e
espraiando o seu branco casario pela encosta plena de uma luminosidade clamorosa.
Percebo agora que não estou só. Ali ao lado, junto ao tronco de um pinheiro, um
lagarto de mil cores de cabeça erguida olha-me num misto de curiosidade e
angústia, na incerteza de que a fera humana lhe possa fazer mal. Mas poderá
estar descansado neste palco de ninguém em que ambos somos protagonistas. Ele
poderá usufruir livremente do seu habitat natural. E eu, perdido no ocaso
do Tempo, naquele pretérito sem presente nem futuro, sinto-me amarrado e sem esperança ao
apeadeiro da vida.
Q.P.
Belo texto! Boas festas! Maria Manuel
ResponderEliminarMuito obrigado, amiga ! Igualmente uma Páscoa Feliz é o meu desejo ...
EliminarMaria Manuel votos de uma Páscoa Feliz.
EliminarObrigada! Agradeço e retribuo os seus votos, a si e sua Família. Um abraço Maria Manuel Almeida Neves
Eliminar"...Um pretérito sem presente nem futuro ..."
ResponderEliminarFrase lapidar que culmina uma prosa literária da melancólica ruralidade característica das gentes das faldas serranas que comeu o pão que o diabo amassou.
E que o Quito tão bem conhece.
Povos que, mau grado as dificuldades que a vida lhes aportou, protegeu a Natureza e o habitat dos seres que a compõem.
E a frase lapidar que acima citei e à qual volto traduz o sentimento que no dealbar das nossas existências nos aperta o coração já descrentes do futuro e incapazes de reformular um passado que não nos trouxe as alegrias que ambicionavamos.
Parabéns Quito.
As tuas qualidades de escritor mantem-se intactas.
Quiçá mais aprimoradas. ..
Um abraço
Obrigado, Rui. Igualmente um abraço para ti.
EliminarRuia Felício votos de uma Páscoa Feliz.
EliminarQuito, ler-te é um prazer, o que não é novidade.
ResponderEliminarGosto da tua escrita. Tens um sábio usufruto dos prazeres, numa versão sintética do termo. Aprecio a forma simples como escreves, o modo como olhas a vida e sabes tratar os pormenores do quotidiano que a outros podem escapar.
Até à proxima...
Un forte abraço do amigo,
Carlos Falcão
Caro Falcão, foram quase três décadas nestes palcos campesinos, a viver e a conviver com os simples. A eles, não ensinei nada. Mas com eles, aprendi tudo - honradez, lealdade, humanismo, solidariedade ...
EliminarIgualmente um forte abraço, meu amigo ...
Carlos Votos de uma Páscoa Feliz
EliminarRafael boa Pascoa para a Céleste Maria e para ti
EliminarAproveito esta boleia para te agradecer mais mais uma vez a tua presença
Quando a minha māe partiu.
Falcāo
Quito, lembrei-me de Raul Seixas (gênio da música) na letra:
ResponderEliminar"Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar..."
Mas foi somente por um instante, posto que o teu texto, à medida que o lia, delineava em minha mente todo esse cenário, que eu conheço tão bem, pois o descreves com tanta maestria. É como se por ele eu também tivesse passado. Mas nem preciso é, pois como tu relatas é tão preciso como a vinda daquela "passagem" que evitamos chegar.
Parabéns!
Um abraço, minha amiga do outro lado do Atlântico. Muito grato pelas palavras tão amáveis ...
EliminarMeu caro Quito.
ResponderEliminarObrigado pela colaboração.
Texto que a exemplo doutros já publicados se lêem e se apreciam do principio ao fim
Os tempos que passaste por essas terras e onde tantos amigos deixaste, permitem que nós, através da tua escrita, possamos ficar com uma ideia de como se vivem vidas amarguradas, vidas singulares de pessoas simples, puras e amigas.
Votos de uma PÁSCOA FELIZ!
Chama a Mamãe votos de Páscoa Feliz!
EliminarFeliz Páscoa, Dom...pra você , Celeste e a todos que compõem esse grupo , extensivos às famílias.
EliminarRafael, para ti e família o meu desejo de uma boa Páscoa. Um abraço ...
ResponderEliminarE, de novo , o Quito nos encanta com a sua escrita. Desta vez para nos descrever com tanto realismo as pessoas e coisas de Salgueiro do Campo que nos julgamos a fazer parte destas histórias. Obrigada, Quito. Boa Páscoa para ti e familia. Bjinhos
ResponderEliminarLó, igualmente para ti e família uma Boa Páscoa ...
Eliminar