quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A NOITE DAS ESTRELAS CADENTES ...





Restei eu ...

O local, que de dia se anima com as escolas e o riso das crianças, de noite é ermo. Ermo e escuro. Escuro e sem vida. Dobra - se um portão e, ao fundo de uma ladeira, um edifício com uma entrada larga e um painel grande e bem a propósito da cidade mondeguina. Não fora muitos dos seus utentes já a caminhar pela fronteira da Vida, a Casa de Repouso teria o brilho de um qualquer espaço de lazer. Mas não. Entramos e logo nos deparamos com quem caminha sem destino ou fazendo discursos à toa. Outros dormem e ainda outros, debruçados sobre mesas largas, vão usando lápis de cor nas flores que pintam em folhas brancas que lhes são distribuídas. O regresso à instrução primária. De velho se volta a menino. Também os que, na posse das faculdades, lêem o jornal da cidade e discutem ainda os problemas da sociedade a que pertencem e a quem generosamente deram o seu contributo numa vida activa de muitos anos. Naquela amálgama de afectos, muitas profissões. Gente com formação académica superior e outros nem tanto. Também os que, fechados em si próprios e alheados do que se passa à sua volta, foram nomes conhecidos na cidade coimbrã. A Noite de Consoada é mote para carta de alforria. Os mais afortunados, apoiados pelas pelas suas famílias que os vão buscar, regressam ao seu passado. Outros, ou porque as suas famílias já se extinguiram ou por incapacidade física ou psíquica, ficam a gravitar na órbita do seu desencanto e das memórias. Ontem, à Mesa da Consoada daquela Casa de Repouso, eram catorze. Quinze se contassem comigo que ali estava como familiar. Não queria que o meu residente jantasse sozinho e fiquei. Os outros, com lágrimas,  beijos e abraços sentidos, partiram. Restei eu.

A refeição que se come em silêncio. Apenas o som dos talheres e os funcionários de escala na noite que de forma diligente vão mimando este ou aquele na sua cadeira de rodas de cabeça pendente sobre o prato da sopa. Naquela mesa ali ao lado, alguém que conheci em tempos de outrora e que me diz muito em apreço. Ela, uma grande professora de matemática. E eu, um desorientado aluno na disciplina. Tempos de Liceu que não esqueço, quando recordo de a ver passar de pasta na mão, com o seu belo rosto e passada elegante. Ensinou-me a fazer equações – com esforço. Olho também a Elvira – nome fictício – que não tem casa nem família e deambula pelas mesas invocando o nome de Deus e me premiou com um beijo molhado na face. Limpa a boca com um lenço branco por causa da saliva e vem agradecer a minha presença no jantar, nesta época de emoções na sua pequena comunidade. Sim, naquela noite de estrelas cadentes. Depois da refeição e do bacalhau como prato obrigatório, começaram a levantar-se das mesas e a dirigirem-se aos quartos que a idade já pesa. Então parti. O Eurico, meu homónimo fardado de branco, foi abrir-me a porta da saída e mergulhei na noite fresca e escura. Rolando devagar enquanto guiava, fui observando as luzes da urbe em noite em que a chuva deu tréguas ao Natal. Nova ceia tinha à minha espera e ao abrir a porta de casa, o meu neto correu para mim de braços abertos e abracei -o. Então disse-lhe, que na viagem de regresso ao lar, ainda não tinha avistado o Pai Natal que de certeza virá. E não lhe menti, porque realmente não vi o trenó dourado do Homem das Barbas Brancas riscando os céus da cidade, porque o Bom Ansião existe e existirá sempre na mente das crianças e dos Homens de Boa Vontade. Mas ali, naquele momento e ao meu colo ainda com a chupeta na boca, eu descobri a serenidade emocional de que tanto necessitava naquela noite especial em que encontrei, no sorriso feliz e inocente do Miguel, o meu Menino Jesus.
QP                 

2 comentários:

  1. Um texto para reflexao!
    As casas de repouso, nome menos incomodativo de consciências, de Lar são um mal menor para uma passagem da vida, daqueles e daquelas que deram o seu contributo valioso à sociedade, mas que o adiantado da idade, aliado a doenças inevitáveis numa idade avançada, permitem uma velhice com os cuidados e algum carinho, e que minorem um fim de vida com dignidade.
    É realmente e cada vez mais uma situação que tende a aumentar devido ao aumento da esperança de vida.
    Sinal dos tempos que vivemos.

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  2. Noite inesquecível de afetos e carinhos, balançando entre os 5 e os 90...
    O mais velho ficou vendo o Pai Natal a afastar-se, o mais novo esperava pela sua chegada.

    Tranquila a consciência do dever cumprido.
    Felicidade de um sonho de criança a realizar!
    Belo testemunho natalício, descrito pela veia do amigo Quito.

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