Vindo do andar do baixo ela aspirava os cheiros do Natal próximo.
As fragrâncias das couves e do bacalhau a cozer, as dos coscorões, das azevias, das filhoses, dos sonhos, fritos e polvilhados com canela, subiam a escada e chegavam-lhe às narinas numa almálgama de aromas natalícios que lhe lembravam a festa que nessa noite iria trazer a sua casa familares e amigos.
Olhava uma vez mais o abat-jour com flores azuis que oscilava por cima da sua cama e sonhava com a madrugada seguinte em que o Menino Jesus deixaria, debaixo da chaminé, a prenda que ela lhe tinha pedido numa carta que um mês antes entregara ao seu Pai.
Ela imaginou o andar de baixo, como a Terra e que ela, no andar de cima, se encontrava no Céu.
Não a deixariam descer ao rés-do-chão, por causa da doença, mas ela acordaria a Mãe, bem cedo, para lha ir buscar.
Apesar dos pais a terem tentado dissuadir, por ela se encontrar muito doente, não abdicou mesmo assim de pedir uma bicicleta.
Nos seus dez anos de idade, estava, desde Agosto, acamada e muito doente.
Os médicos já tinham explicado aos pais que ela não duraria muito, mas nenhum nenhum pai, nem especialmente nenhuma mãe, desistem da esperança de que os médicos estejam enganados.
No dia de Natal à tarde fui com os meus pais a casa dela onde costumavamos passar muitos fins de semana. A casa era mesmo junto à linha da Lousã, na Casa Branca e a amizade entre as nossas famílias resultava do facto de o meu pai fazer a escrita de seu pai, que tinha uma estância de madeiras perto das Nogueiras.
Subi ao primeiro andar, dei um beijinho à Emilia, que me estendeu a mão branca de cêra, e me sorriu de olhos encovados e pisados.
Éramos da mesma idade e tão amigos!
Quantos sábados deambulámos pelo pinhal da encosta próxima da sua casa, a apanhar espargos, picando as mãos nos espinhos, para depois a sua mãe os cozinhar com ovos mexidos!
Recordei as nossas férias em Buarcos, dos passeios de mãos dadas na areia molhada da praia a ouvir o marulhar das ondas e a rimo-nos e arrepiarmo-nos com a espuma gelada da água que nos molhava os pés.
Tudo isso me veio à memória sentado na beira da sua cama, orando em silêncio a Deus para que curasse depressa aquela minha única e grande amiga.
Já me tinham dito que a leucemia de que padecia a levaria à morte muito em breve, mas eu não compreendia que Deus pudesse ser assim tão injusto e acreditava que haveríamos voltar a calcorrear alegremente as veredas do pinhal que tão bem conhecíamos.
No dia 1 de Janeiro seguinte,voltei a subir ao andar de cima para a ver, pela vez derradeira.
Ainda hoje guardo essa imagem da minha querida amiga, deitada de costas, as mãos postas sobre o peito, de olhos fechados, poucos minutos antes de ser realizado o seu funeral para a Conchada onde ainda hoje visito os seus restos mortais, na Capela Mortuária, quando lá vou.
Não estou certo, mas na minha inocência infantil, pareceu-me, que nunca chegou a andar na bicicleta que o Menino Jesus lhe lhe trouxe nesse fatídico dia de Ano Novo, vê-la esboçar-me um leve sorriso antes de a levarem para o cemitério.
Um Natal que nunca esquecerei.
Rui Felicio
Este texto do Rui Felício, é tocante e percebe - se que é cruelmente real. Mais comovente pela idade ainda tenra da doente. Fica para mim, a reflexão de que o Natal é apenas e só um riso de criança e esse ser que é real e existe - o Pai Natal. Porque existe mesmo e é proibido destruir a ilusão e o sonho de uma criança. De qualquer criança. De resto,quando chegamos a uma idade simpática, é inevitável cadeiras vazias na mesa. Natal será bom na concórdia entre famílias, mas sempre uma ferida aberta quando há duas ou três fatias de bolo - rei que sobraram. Mas na sua essência Natal é AMOR. Mas Natal não é supermercados apinhados de brinquedos até ao tecto no convite ao consumo furioso. Natal, repito,são as crianças e Homem das Barbas longas que vem de longe e de trenó e que agora tem uma trabalheira dos diabos a desaparafusar os exaustores das chaminés para colocar as prendas nos sapatinhos dos meninos que o aguardam com impaciência.
ResponderEliminarDentro do possível, Boas Festas para ti, amigo Rui Felício
Um Bom Natal para ti meu amigo Quito.
ResponderEliminarTantas e tão cruéis verdades aquelas que dizes.
Que nos devem fazer pensar nesta época louca de desenfreado consumismo.
Em que se luta para a cidade de cada um ter a maior árvore do mundo, a mais alta, a que tem mais lâmpadas, a que lança os mais eficazes raios laser...
Agradeço ao Rui Felício a republicação deste texto.Pela sua emotividade enquadra-se perfeitamente na quadra que atravessamos.
ResponderEliminarNão tens que agradecer amigo Rafael.
ResponderEliminarNem sempre o Natal traz recordações de alegria.
É um tempo de reflexão em que nos vêm à memória as coisas boas e más da vida.