guerreiros urbanos ...
João Silveira nasceu em Belém, ali à beirinha do Tejo. Trabalha
nos escritórios de um armazém de tecidos e todos os dias se levanta pelas sete
horas da manhã. A higiene necessária, o café bebido à pressa, o pão que se come
escada abaixo que o transporte não espera. Lá fora, o estrondo da cidade.
Autocarros, elétricos e automóveis com o seu estridente buzinar são o sangue
vivo da urbe indomável a que já está habituado. No transporte público apinhado
de gente, consegue com custo lugar. De pé, como todos os dias, naquele
amontoado de passageiros que se esforça num equilíbrio instável nas curvas
apertadas do autocarro da Carris . Num solavanco a paragem. De novo a rua. De
novo gente que se cruza apressada na rota dos seus destinos, esgrimindo
argumentos inúteis contra o ponteiro das horas e dos minutos da ditadura do
relógio. Depois a descida ao metropolitano que é hora de transbordo, mais uma
vez engolido naquele bailado estranho de cidadãos anónimos que se digladiam na epopeia
de sobreviver. O cais é escuro e soturno. Olha-se a boca do inferno, na
esperança do ruido cavernoso que finalmente aparece. E lá vem ele, puxando as
carruagens como num jogo infantil do Lego, silvando ao fundo do túnel com a sua
luz sinistra, rasgando o ventre da cidade. João chegou finalmente ao armazém
dos tecidos. Pontual, como sempre pretende ser. Depois, a burocracia dos
recibos e das faturas impressas em papéis numa girândola de cores consoante o
fornecedor, a tentar aligeirar a rotina de viver no esforço cinzento de todos
os dias. O almoço frugal no pequeno café da esquina. Uma passagem de olhos
menos interessada pelos cabeçalhos dos jornais que a imprensa escrita já cansa.
Notícias sensacionalistas ou alarmantes, a convidar o leitor a comprar o matutino
que laboriosamente é dado à estampa nas rotativas das máquinas gastas pelo uso
nas madrugadas de uma urbe já adormecida, ou acordada nas vielas festivas de
gente jovem que professa a religião da noite, de cerveja na mão e o trinado de
um fado arrastado que se ouve nas ruas estreitas e escuras à luz de um
candeeiro mortiço.
A tarde é gémea da manhã. Burocracia e mais burocracia e
telefones a tocar num ritual que se repete todos os dias. Depois a tarde cai e
são horas de regressar. É o recomeço da aventura. No transporte urbano lotado de gente silenciosa encarcerada no seu mundo interior de desencantos e
preocupações, João olha absorto os rostos de mármore que o rodeiam e as luzes
da urbe cosmopolita. E o colorido das montras natalícias a cintilar de lâmpadas
intermitentes, que mascaram a sombra opaca da noite outonal. Viajando pelo
emaranhado das ruas da capital, João Silveira navega também pelo seu passado e
dos tempos de escola em que, introvertido e distante, observava os companheiros
dum canto do pátio de recreio e que o apelidavam de “João Só”. Afinal, meditava
na realidade atual do seu viver e da sua ilha de solidão rodeada de gente por
todos os lados, como nas memórias de infância. Também os outros que o acompanham
de regresso aos seus lares naquela nave de silêncios, são ilhas no seu mutismo
e olhar perdido nos seus misteriosos pensamentos. Ao serão, em frente da
televisão, as palavras e as imagens já não assustam. As tragédias da aldeia
global passam por ele com a indiferença do cidadão comum barricado em si
próprio, à espera de melhores dias que se calhar não virão . Lá fora, a noite é
agora mais escura num céu estrelado e amanhã, quando o sol ressurgir por entre
prédios sem alma e torres de betão, um novo recomeçar. A cabeça que se deita no
travesseiro confortável e o sorriso brando com que se adormece de mais um dia ultrapassado
na batalha contra um inimigo impiedoso e sem rosto.
João Só, guerreiro urbano deste Tempo, venceu a cidade.
Q.P.
O coração apertado quase dói à medida que acompanha o João Só num ciclo infernal que se repete ao longo dos dias, dos meses, dos anos ancorado numa esperança opaca de um dia se quebrar.
ResponderEliminarDebalde porém!
Só a doença ou a morte podem inverte esta dura realidade.
Iludamo-nos com a visão cor de rosa que os políticos nos impingem.
Bom Natal Quito
Obrigado, Rui. Para ti também, pelo menos com saúde e a possível tranquilidade nas memórias. Espero no ano que chega, poder regressar à bela Ericeira onde vives e estar contigo para darmos aquele abraço e conversarmos. É sempre um prazer estar contigo e recordarmos o nosso Bairro.
ResponderEliminarQuanto ao texto, é um pouco o retrato do que vou observando na capital, agora que para lá caminho com mais frequência ao encontro desse menino que me preenche o pensamento - o meu neto Miguel.
Um abraço
Ora aqui está num texto bem elaborado, como se vive numa cidade como Lisboa, principalmente nos dormitórios desta cidade grande urbe. Os constrangimentos provocados pelos transportes que em muitos casos não passa só por um, de quem trabalha na cidade, saindo de casa bem cedo e regressando a horas impróprias.É certo que a ideia que se tem é que a habituação a este frenesim já não os preocupa e preferem viver assim do que na província...
ResponderEliminarAssim seja, é eu prefiro viver por cá...
Nas cidades pequenas há outra qualidade de vida. O emprego onde se chega em 10 minutos, e rápido a resolver qualquer problema burocrático. Castelo Branco é bem exemplo disso. Não me esqueço do dia em que entrei na Câmara de Castelo Branco e fui logo atendido pelo Presidente César Vila Franca e os 300 contos (sim contos naquele tempo !) que ele me deu para o Rancho do Juncal, embora nos dias de hoje só num filme de ..fiçcão !!!
EliminarObrigado Quito por me recordares os tempos que vivi na capital. Grande texto,
ResponderEliminarcomo todos os que escreves.
Feliz Natal para ti e toda a tua família.
Zé Afonso
Obrigado Afonso. Festas Felizes para ti e família ...
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