Porque o Natal ainda faz sentido, deixo-vos uma história que publiquei há anos. Cada Natal é de cada um e ninguém vive os Natais dos outros. Acredito que a fórmula da felicidade existe quando alguém diz que não trocaria o seu Natal pelo de ninguém. Eu não troco os meus. Não vejam esta história como algo triste; lembrem-se de que nessa noite de consoada ele foi feliz. Com votos de Boas Festas:
Solidão inconfessada:
Tinha ambos os filhos bem casados. Um até era soldado da GNR e o outro, já avô – era-se avô muito cedo e muito cedo se tinha a aparência de velho – era caseiro da quinta da Giroa. Tendo enviuvado depois que uma maleita no ventre da companheira a arrastara para o hospital de Lamego e daí para o cemitério de Melcões, decidiu que viveria só, distante dos filhos. Não por desamor, mas por carinho e afeto às paredes e terrão natal. As raízes eram demasiado fortes e tortas, mais resistentes do que as da piorna, que abraçam as pedras. Nenhum grito se lhe ouvira e se alguém lhe notasse um casal de vocábulos que não fossem apenas os da saudação e boa educação diária seria em dia de festa, depois da ingestão de mais aguardante do que a dose diária recomendada pelo médico. Sim, de médico e de louco todos temos um pouco e ele, mais do que é costume, tinha muito de cada. Como tinha muito de louco, tinha muito de médico e isso ditava que a aqua vitae lhe curasse todas as maleitas. Dividia os seus 88 anos por duas pernas andarilhas e incansáveis e alimentava-se frugalmente. Nas tabernas só pedia os copos de branquinha que apeguilhava com peles secas de bacalhau que escondia sempre nos bolsos puídos do casaco, coberto por décadas de sujidade. Visitava os filhos sempre que podia e as sementeiras, regas e colheitas lho permitiam. Fazia-o mormente nas festas de Nª Sr.ª da Saúde e na véspera de Natal, arrastando o corpo – raramente a vontade – para as terras alheias, onde eles moravam. Nessa véspera de Natal cumpria a tradição: logo pela manhã lavrou a neve e ao meio-dia sentava-se ao aconchego da lareira em casa do filho mais velho, gozando da companhia dos netos e bisnetos e enxugando as lágrimas de felicidade, ao contemplar a sua herança. Antes da ceia, da parte de tarde, desceu a Moimentinha e a felicidade abriu-lhe a goela, até ficar eufórico e quente. Quando voltou para casa do filho, consoou e então falou como nunca fizera. Cada frase lavrava um testamento e o insólito desfiar fez com que todos o ouvissem em profundo respeito. Falou e desfalou das águas, das contas que faltava pagar ao Carrapatoso ainda da batata da semente desse ano, dos contos de reis que guardava em obtusos locais da casa pobre. Disse da sua felicidade e nunca chorou a solidão. Pediram-lhe que dormisse lá. Recusou. Nunca o tinha feito e não o faria nessa noite. A memória da companheira esperava-o noutras paredes; não naquelas. Saiu sob a neve que caía abundante, mas serena, e decidiu atalhar pelo monte do Porto, cruzar o vale dos Fieiros e passar a Cadeirinha, chegando em sossego a Melcões, talvez já depois da meia-noite, “se Deus m’ajudar”. Na missa de Natal ninguém o via, logo ele, que nunca faltara. Telefonaram para a venda do Peliqueiro a perguntar se tinha passado a noite em casa do filho. Que não. Que tinha saído depois da ceia, para voltar a casa. À mesma hora em que costumava ajoelhar em frente ao altar, estava agora o Linhas rigidamente ajoelhado e debruçado sobre uma pedra, um pouco antes da Cadeirinha. Envolto pelo manto branco, enquanto a neve, indiferente, caía e o seu corpo, frio, perdia a cor
Solidão inconfessada:
Tinha ambos os filhos bem casados. Um até era soldado da GNR e o outro, já avô – era-se avô muito cedo e muito cedo se tinha a aparência de velho – era caseiro da quinta da Giroa. Tendo enviuvado depois que uma maleita no ventre da companheira a arrastara para o hospital de Lamego e daí para o cemitério de Melcões, decidiu que viveria só, distante dos filhos. Não por desamor, mas por carinho e afeto às paredes e terrão natal. As raízes eram demasiado fortes e tortas, mais resistentes do que as da piorna, que abraçam as pedras. Nenhum grito se lhe ouvira e se alguém lhe notasse um casal de vocábulos que não fossem apenas os da saudação e boa educação diária seria em dia de festa, depois da ingestão de mais aguardante do que a dose diária recomendada pelo médico. Sim, de médico e de louco todos temos um pouco e ele, mais do que é costume, tinha muito de cada. Como tinha muito de louco, tinha muito de médico e isso ditava que a aqua vitae lhe curasse todas as maleitas. Dividia os seus 88 anos por duas pernas andarilhas e incansáveis e alimentava-se frugalmente. Nas tabernas só pedia os copos de branquinha que apeguilhava com peles secas de bacalhau que escondia sempre nos bolsos puídos do casaco, coberto por décadas de sujidade. Visitava os filhos sempre que podia e as sementeiras, regas e colheitas lho permitiam. Fazia-o mormente nas festas de Nª Sr.ª da Saúde e na véspera de Natal, arrastando o corpo – raramente a vontade – para as terras alheias, onde eles moravam. Nessa véspera de Natal cumpria a tradição: logo pela manhã lavrou a neve e ao meio-dia sentava-se ao aconchego da lareira em casa do filho mais velho, gozando da companhia dos netos e bisnetos e enxugando as lágrimas de felicidade, ao contemplar a sua herança. Antes da ceia, da parte de tarde, desceu a Moimentinha e a felicidade abriu-lhe a goela, até ficar eufórico e quente. Quando voltou para casa do filho, consoou e então falou como nunca fizera. Cada frase lavrava um testamento e o insólito desfiar fez com que todos o ouvissem em profundo respeito. Falou e desfalou das águas, das contas que faltava pagar ao Carrapatoso ainda da batata da semente desse ano, dos contos de reis que guardava em obtusos locais da casa pobre. Disse da sua felicidade e nunca chorou a solidão. Pediram-lhe que dormisse lá. Recusou. Nunca o tinha feito e não o faria nessa noite. A memória da companheira esperava-o noutras paredes; não naquelas. Saiu sob a neve que caía abundante, mas serena, e decidiu atalhar pelo monte do Porto, cruzar o vale dos Fieiros e passar a Cadeirinha, chegando em sossego a Melcões, talvez já depois da meia-noite, “se Deus m’ajudar”. Na missa de Natal ninguém o via, logo ele, que nunca faltara. Telefonaram para a venda do Peliqueiro a perguntar se tinha passado a noite em casa do filho. Que não. Que tinha saído depois da ceia, para voltar a casa. À mesma hora em que costumava ajoelhar em frente ao altar, estava agora o Linhas rigidamente ajoelhado e debruçado sobre uma pedra, um pouco antes da Cadeirinha. Envolto pelo manto branco, enquanto a neve, indiferente, caía e o seu corpo, frio, perdia a cor
Antonino Silva
Em Dia de Natal, o Antonino brinda-nos com mais um texto. Um talento de mão - cheia o seu prosar.
ResponderEliminarBoas Festas, amigo ...
Obrigado Antonino por ter a oportunidade de publicar mais este texto tão próprio do Natal.
ResponderEliminarObrigado professor.