segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

NATAL EM ARMAS ...






O Mimoso era um homem introvertido. Refém dos seus misteriosos pensamentos falava pouco. O seu distanciamento para com os camaradas de armas daquele pequeno aquartelamento lá para os lados do Gabu fizeram dele uma ilha - uma ilha de solidão. Tão estranho comportamento abriu um fosso no relacionamento com a pequena comunidade militar do leste da Guiné. Alguns deitavam-se a adivinhar. Uns diziam que era feitio, outros talvez um desgosto de amor. Naquele dia, já próximo da época natalícia, o Cleto teve um azar. Numa vinda ao Gabu num camião militar, um buraco na estrada fez o monstro dar um enorme solavanco. O Cleto, displicentemente sentado em cima de um guarda – lamas, foi cuspido violentamente da viatura. Perdeu os sentidos e de imediato foi providenciado o transporte para o Hospital de Bissau, o que só veio a acontecer no dia seguinte por via aérea. O mal não era de monta e, cinco dias depois, estava de regresso ao aquartelamento. Para além de um forte hematoma na testa, o Cleto trazia um pé engessado e deslocava-se com grande dificuldade de muletas. Passava muito tempo no seu catre, dizendo mal da sua desdita. Na noite de Consoada, o João Cleto estava desmoralizado. A evolução do seu estado de saúde não se fazia sentir. Recusou a companhia dos amigos para a ceia de Natal e ali ficou no seu abrigo subterrâneo, a coberto do fogo inimigo que poderia aparecer da escuridão do capim. Naquele silêncio, meditando sobre aquela noite tão especial, viu com surpresa abeirar-se dele o Mimoso com o seu porte avantajado. Ficou expectante. Afinal o camarada era o tal companheiro que não procurava a amizade de ninguém. Então o transmontano, que trazia debaixo do braço um embrulho de papel grosso, sentou-se junto dele. Cuidadosamente abriu a encomenda que exalava o cheiro dos belos enchidos que a família lhe tinha enviado daquele pedaço de Portugal, para que o Mimoso tivesse o aroma e os sabores da sua terra de origem em época natalícia. Fez então menção de dividir aquela merenda com o camarada agora debilitado de corpo e de alma. O João Cleto não teve coragem de recusar o convite para aquela ceia surpreendente e improvisada. Então, tendo como testemunhas as estrelas cintilantes que polvilhavam o céu que se via pela vigia do abrigo, os dois homens comeram pausadamente e conversaram em ameno convívio, honrando a noite mágica do Deus Menino.
Q.P.
    

8 comentários:

  1. Que Belo texto.
    Obrigado Quito.
    Até breve um Abraço

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    1. Obrigado, Lucinda. Boas Festas junto da filha e com o Francisco no nosso pensamento ...

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  2. Belo texto que nos transporta para a quadra natalícia que se aproxima.
    São os sentimentos de amor pelo próximo, dos afetos familiares e não só, e que neste caso passado em teatro de guerra, teve a sua expressão máxima,a partilha que mais se evidência em situações de isolamento, dividindo não só um bem alimentar, mas sobretudo a amizade.

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    1. Obrigado, Fernando. A título de curiosidade, apenas dizer que o João Cleto também protagonista desta história é natural de Coimbra e ainda o encontrei cá depois do regresso da guerra. Estive com ele algumas vezes, mas depois nunca mais soube dele ...

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  3. Episódios inesquecíveis e bem retratados, como só o quito o sabe fazer. Foram anos terríveis e muitos entravam em depressão, principalmente, na altura do Natal.
    Vi no hospital um soldado em estado cataléptico, à espera para ser evacuado e esteve naquele estado quase três meses mais dois de viagem. Só poderia ser evacuado de barco. Nunca mais soubemos nada dele, mas dado o estado em que se encontrava, duvido que se tenha curado.

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    1. Obrigado pelo comentário, Alfredo. Não pretendi aqui retratar una história de guerra, mas uma história de paz entre dois homens em condições adversas. Mas o acidente apenas dá para lembrar algo que era recorrente: acidentes por culpa dos próprios militares e a sua displicência. 28 Km de picada aos solavancos em cima de um guarda - lamas e eram vários que o faziam. Naquele dia correu mal, mas não foi por isso que não continuaram com a mesma atitude. A rapaziada quando é nova pensa que é imortal ...

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  4. É na adversidade alheia que se extravasam os sentimentos daqueles que por feitio ou por razões ocultas adoptam um comportamento solitário ou insociavel.
    O que demonstra que sob a carapaça com que se protegem existem muitas vezes sentimentos solidários inexpectaveis.

    Mais um belo texto do Quito

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    1. Caro Rui, andaste por lá como eu, pelo que terás assistido a episódios que te marcaram e ficaram na retina. Neste caso, eu não quis marcar a guerra, mas sim um compromisso de paz entre dois homens. Obrigado por teres aparecido e também por dares o teu testemunho e contributo ...

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