O Mimoso era um homem introvertido. Refém dos seus
misteriosos pensamentos falava pouco. O seu distanciamento para com os
camaradas de armas daquele pequeno aquartelamento lá para os lados do Gabu
fizeram dele uma ilha - uma ilha de solidão. Tão estranho comportamento abriu
um fosso no relacionamento com a pequena comunidade militar do leste da
Guiné. Alguns deitavam-se a adivinhar. Uns diziam que era feitio, outros talvez
um desgosto de amor. Naquele dia, já próximo da época natalícia, o Cleto teve
um azar. Numa vinda ao Gabu num camião militar, um buraco na estrada fez o
monstro dar um enorme solavanco. O Cleto, displicentemente sentado em cima de
um guarda – lamas, foi cuspido violentamente da viatura. Perdeu os sentidos e
de imediato foi providenciado o transporte para o Hospital de Bissau, o que só
veio a acontecer no dia seguinte por via aérea. O mal não era de monta e, cinco
dias depois, estava de regresso ao aquartelamento. Para além de um forte hematoma
na testa, o Cleto trazia um pé engessado e deslocava-se com grande dificuldade
de muletas. Passava muito tempo no seu catre, dizendo mal da sua desdita. Na
noite de Consoada, o João Cleto estava desmoralizado. A evolução do seu estado
de saúde não se fazia sentir. Recusou a companhia dos amigos para a ceia de
Natal e ali ficou no seu abrigo subterrâneo, a coberto do fogo inimigo que
poderia aparecer da escuridão do capim. Naquele silêncio, meditando sobre
aquela noite tão especial, viu com surpresa abeirar-se dele o Mimoso com o seu
porte avantajado. Ficou expectante. Afinal o camarada era o tal companheiro que
não procurava a amizade de ninguém. Então o transmontano, que trazia
debaixo do braço um embrulho de papel grosso, sentou-se junto dele. Cuidadosamente
abriu a encomenda que exalava o cheiro dos belos enchidos que a família lhe
tinha enviado daquele pedaço de Portugal, para que o Mimoso tivesse o aroma e
os sabores da sua terra de origem em época natalícia. Fez
então menção de dividir aquela merenda com o camarada agora debilitado de corpo
e de alma. O João Cleto não teve coragem de recusar o convite para aquela ceia
surpreendente e improvisada. Então, tendo como testemunhas as estrelas
cintilantes que polvilhavam o céu que se via pela vigia do abrigo, os dois
homens comeram pausadamente e conversaram em ameno convívio, honrando a noite
mágica do Deus Menino.
Q.P.
Que Belo texto.
ResponderEliminarObrigado Quito.
Até breve um Abraço
Obrigado, Lucinda. Boas Festas junto da filha e com o Francisco no nosso pensamento ...
EliminarBelo texto que nos transporta para a quadra natalícia que se aproxima.
ResponderEliminarSão os sentimentos de amor pelo próximo, dos afetos familiares e não só, e que neste caso passado em teatro de guerra, teve a sua expressão máxima,a partilha que mais se evidência em situações de isolamento, dividindo não só um bem alimentar, mas sobretudo a amizade.
Obrigado, Fernando. A título de curiosidade, apenas dizer que o João Cleto também protagonista desta história é natural de Coimbra e ainda o encontrei cá depois do regresso da guerra. Estive com ele algumas vezes, mas depois nunca mais soube dele ...
EliminarEpisódios inesquecíveis e bem retratados, como só o quito o sabe fazer. Foram anos terríveis e muitos entravam em depressão, principalmente, na altura do Natal.
ResponderEliminarVi no hospital um soldado em estado cataléptico, à espera para ser evacuado e esteve naquele estado quase três meses mais dois de viagem. Só poderia ser evacuado de barco. Nunca mais soubemos nada dele, mas dado o estado em que se encontrava, duvido que se tenha curado.
Obrigado pelo comentário, Alfredo. Não pretendi aqui retratar una história de guerra, mas uma história de paz entre dois homens em condições adversas. Mas o acidente apenas dá para lembrar algo que era recorrente: acidentes por culpa dos próprios militares e a sua displicência. 28 Km de picada aos solavancos em cima de um guarda - lamas e eram vários que o faziam. Naquele dia correu mal, mas não foi por isso que não continuaram com a mesma atitude. A rapaziada quando é nova pensa que é imortal ...
EliminarÉ na adversidade alheia que se extravasam os sentimentos daqueles que por feitio ou por razões ocultas adoptam um comportamento solitário ou insociavel.
ResponderEliminarO que demonstra que sob a carapaça com que se protegem existem muitas vezes sentimentos solidários inexpectaveis.
Mais um belo texto do Quito
Caro Rui, andaste por lá como eu, pelo que terás assistido a episódios que te marcaram e ficaram na retina. Neste caso, eu não quis marcar a guerra, mas sim um compromisso de paz entre dois homens. Obrigado por teres aparecido e também por dares o teu testemunho e contributo ...
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