Em busca do que falta
Por mor da segurança e medo daquilo que não dominamos e desconhecemos, estamos capazes de abdicar de uma boa dose da nossa liberdade. Muitos acederam à liberdade como um direito adquirido pelo qual não houve mister de lutar. Faz parte do nosso entendimento que aquilo que não nos custou a ganhar também não custa tanto a perder e é por isso que aceitamos um certo compromisso entre o sermos livres e o estarmos seguros.
Olhando para trás, revejo outras formas de liberdade das quais abdiquei por causa de recompensas imediatas de bem-estar. Éramos ganapos que saíamos em bando para a Quinta da Livração, para o Sr. do Calvário ou para o Monte a guardar as ovelhas que, em rebanho, se iam juntando nos locais de pasto e por aí passariam o dia, fizesse frio ou calor, estivesse sol ou chuva.
Enquanto as ovelhas pastavam e pensativas ruminavam, o que haveríamos nós de fazer? Havia que jogar à bola – um dos filhos do Dominguinhos tinha uma bola de catchu, roçada e quase com o pipo à mostra, que fazia as fantasias da cachopada – rolar pneus ou, ainda, enrolar alguma barba de milho, com a qual fazíamos ares impantes de manganões, com cigarros na beira da boca. Às vezes aprimorávamos os artifícios do fumo e fazíamos cachimbos de cana e canudos de esferográficas, que em tudo se pareciam ao cachimbo do Pai Tomás.
As mães não gostavam muito dos jogos de bola ou de corridas de pneus nas leiras, porque cada um de nós só tinha umas botas ou uns sapatos a cote e se fossem esbeiçados ou se as solas saltassem havia que os mandar para o sapateiro – quando havia dinheiro – ou dar uns pontos com arames, o que era o mais frequente. Por outro lado, neste segundo caso, a nossa tristeza era maior, porque, com pontos de arame nos sapatos, éramos proibidos de jogar, para não furarmos a bola na primeira trivela que disparássemos. A opção era jogarmos descalços, mas os danos nos dedos grandes eram consideráveis.
Longe de casa, tínhamos momentos altos no momento da merenda – nome pomposo que dávamos ao que seria o almoço. Era mais eficaz dar-lhe o nome de merenda, porque esta é sempre possível de partilhar, enquanto que o almoço é uma refeição mais egoísta, que cada um costuma comer do seu prato. Por isso mesmo, tudo o que se comia fora de casa era ‘a merenda’ – como que por antonomásia – e com esse nome sabia muito melhor. Merendar era muito mais divertido e livre do que almoçar, pois todos comiam de tudo e do que todos levavam. Provavam-se coisas que em casa não havia e amiúde se trocavam sardinhas por sandes de geleia e sandes de carne gorda por pão com marmelada. Ninguém perdia e todos ganhavam.
Mas o ponto alto dos dias de fim de verão era a caça dos cachaporros. Não me perguntem qual será o nome verdadeiro, mas posso atestar-vos, depois de aturada investigação, que são uma espécie de tubérculos com o formato das trufas brancas que nascem nas raízes de uma planta da família das apiáceas (aipo, salsa, cenoura, cherovia, umbelífera ou cicuta, por exemplo). O nome poderá ter a ver com o feminino cachaporra, um porrete ou cacete para bater. Contudo, esta incerteza quanto à existência ou não do termo, não tira nada à felicidade de, após escavarmos cerca de um palmo, encontrarmos o tal cachaporro de tamanho variável. Alguns eram do tamanho de uma avelã, mas havia outros maiores do que uma batata da semente, quase do tamanho de um nabo. O sabor era agridoce e só se comia depois de rasparmos a casca com uma pedra ou um canivete. Tinham um aspeto barroco e irregular e comíamo-los crus.
Em casa, as mães avisavam para termos muito cuidado e não comermos demasiados, pois podiam fazer mal. Aliás, lembro-me de a minha mãe lhes chamar “comida de sapos”, não sei porquê. A sabedoria que se herdava deveria saber que, muito provavelmente, sendo uma planta da mesma família que a cicuta, haveria por ali alguma toxina de que não conviria abusar. Desconheço a razão, tal como desconhecia na altura. Essa ignorância feliz dava-lhe todo o sabor.
Podia agora alargar a lista dos marcadores de felicidade e tamanha liberdade. Poderia falar da ida às sanchas, da apanha do rosmaninho, dos primeiros revólveres com fulminantes e dos arcos de flechas feitos com vergas de castanho e canas de foguetes. Podia, mas não o farei, pois cada um deles é uma marca indelével de tamanha liberdade que nunca precisou, na altura, de ser trocada pela segurança. Não nos sentíamos inseguros, por isso a felicidade media-se na liberdade que tínhamos. E como éramos livres!
O tempo passou e cada um de nós pediu ao tempo segurança. Segurança nos estudos, nas relações, na profissão e na família. Por cada bocadinho de segurança que o tempo nos deu, levou-nos outro tanto de liberdade e não vale a pena pedir ao tempo que no-la devolva, porque ele já lá vai e não olha para trás.
Texto do Professor Antonino Silva
Maravilha!
ResponderEliminarTantas liberdades que tínhamos!
(eu só evitaria repetir momentos/ momento em "momentos altos no momento da merenda")
Embora perceba, a mim parece-me uma repetição propositada que até este momento (mais uma vez :) ) ainda me "soa" bem.
ResponderEliminarGostos meus...
Eu não amo Mentos mas respeito quem gosta :O)
EliminarConfiemos então que, no momento certo,surja alguma explicação por parte do Mestre sobre esta espécie de momentânea virose. ;)
EliminarHá-de chegar o momento, a qualquer momento...
EliminarEste mais um momento que passei por aqui para apreciar os momentos dedicados aos comentadores e aos que se inspiraram a deixar bons momentos,que enriquecem o belo texto do Mestre.
ResponderEliminarPor momentos fiquei com medo de ser o momento de eu levar uma cachaporrada.
EliminarA liberdade e a segurança tem cada qual o seu momento!
ResponderEliminarTexto lindo com excelentes momentos.
Grande abraço.
Ficará assim. A opção seria "momentos altos na altura da merenda" ou "alturas altas no momento da merenda". Também seriam giras glosas, mas menos inocentes.
ResponderEliminarEstou a brincar. Um dia, este e outros textos merecerão uma revisão mais clínica.
Não estragues é com variantes perigosas, como "momentos de mer... enda no momento da merenda".
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