ERA UMA VEZ UM COLÉGIO
Era uma vez um colégio. Um colégio na bela Coimbra. Ali,
passando os Arcos do Jardim, subíamos a Rua de Tomar e, do lado esquerdo
daquela artéria, entrava-se por um portão largo para uma casa de traça
escorreita e de dois andares. Outrora casa de habitação, o edifício tinha
subido de estatuto e era agora forrado de um nome aristocrático – Dom João de
Castro. O Colégio era composto por professores e alunos. Os professores –
alguns – refugiados de perseguição política e do doutor Salazar, que lhes não
permitia lecionar no ensino público. E era num colégio particular que os
docentes angariavam a sua subsistência. Entre eles, Teles Grilo e Fernando
Queiroz.
Dos alunos, era mais difícil falar. Nunca um aluno aplicado,
dedicado às matérias e civilizado, foi objeto de notícia. E desses, o Dom João
de Castro tinha um leque razoável deles. E também havia os outros. Faltosos,
cábulas, incultos, irritantes e truculentos. E começar a pensar neles é como
quem está a desfiar as Contas de um Rosário. Um tal Queiroz, que dava ares de
intelectual e que trazia numa pasta misturado com compêndios maltratados,
revistas de mulheres nuas de duvidoso gosto. O
Lourenço, que tinha uma vaga ideia que a Revolução Francesa tinha sido uma
guerra muito sangrenta. O Toni, que era especialista em arraiais de pancadaria
nas noites de Coimbra. E um tal Cunha, protagonista de uma rocambolesca cena na
pequena esquadra de polícia que havia ao cimo da Rua Alexandre Herculano, junto
ao colégio das raparigas e com o mesmo nome. Um piropo infeliz a uma jovem
donzela pelo tal Cunha, e da queixa que a aluna logo fez ao sentinela da
esquadra, valeu que viesse um piquete de guardas junto à Associação Cristã da
Mocidade uns metros abaixo e que um grupo de nós – incluindo eu – fossemos
todos a gancho para a esquadra.
Alguém foi a correr dizer ao Dr. Teles Grilo que um grupo de
alunos estavam detidos na Esquadra da Alexandre Herculano. E ele, que apesar do
seu feitio meio conflituoso era um bom homem, lá foi com a sua gabardina até
aos pés e a mortalha do cigarro pendurada ao canto dos lábios, tentar resolver
o problema. Entrou de supetão na esquadra, deu de caras comigo e de dedo à
frente do meu nariz acusou – me:
- Óh miúdo andas sempre metido nestas confusões !!!
Eu, que nunca tinha brigado com ninguém ou desconsiderado
quem quer que fosse.
Com falinhas mansas, o Grilo tentava convencer o Chefe da
esquadra:
- Sabe Senhor Chefe … isto é gente nova … é preciso termos
alguma condescendência … eu quando chegar ao colégio chamo – os à pedra …
Por essa altura, o Cunha que tinha sido o responsável pelo
incidente e era conflituoso que baste, fungava pelo nariz parecia um touro
enraivecido. O que é certo que o Dr. Grilo conseguiu os seus intentos. Tivemos ordem
de despejo. Saiamos em rebanho e o truculento Cunha que liderava a manada, saiu
primeiro e foi barrado à saída pela sentinela que não sabia da súbita decisão
do Chefe da esquadra. E perguntou de maus modos:
- Onde é que o Senhor pensa que vai?
E o Cunha não está com meias medidas – dá um estalo no
polícia …
Assim como saímos, voltámos a entrar na esquadra. Mais que
uma cena da vida real, aquilo parecia um filme de desenhos animados. Mais
negociações, o Dr. Teles Grilo agastado a desfazer-se em mil desculpas até que
o chefe da esquadra ditou a douta sentença:
- Podem ir embora mas ( e apontou para o Cunha) … aquele
senhor fica cá.
E ficou. Detido, se calhar metido num calabouço e, num
pequeno exercício de imaginação, estou a vê-lo a comer ao almoço e de colher na
mão, feijão carrapato numa marmita de lata para lhe arrefecer os ânimos ...
Kito Pereira
Dizes bem era. Já há muitos anos que deixou de ser.
ResponderEliminarAinda foi do meu tempo quando andei no Colégio São Pedro e éramos servidos nas pevides tanto pelo pianinho como pelo Calmeirão!
A rua de Tomar não sei se ligava à Alexandre Herculanos já nessa altura pela Rua Venânci0 Rodtigues.
São estórias que se lembram com saudade...Mas dar uma estalada ao polícia não lembra nem ao careca...
Na Rua de Tomar, junto à entrada sul da Sereia, descias a Alexandre Herculano, onde havia uma pequena esquadra da PSP e logo ao lado o Colégio Alexandre Herculano de raparigas. Ao fundo da Alexandre Herculano e do outro lado da rua, o ACM. O Cunha por cá ficou e vive lá para os lados da Bencanta.
ResponderEliminarFeitas as contas e porque fui para o exército em 197O, este episódio é anterior. Por isso vê lá aos anos que isto foi. Mais de 5O !!!
ResponderEliminarQue bela estória sim deve ter mais de 50 anos.
ResponderEliminarKito eu não conheço feijão carapato...conheço por exemplo Rapaziada de Coruche será o mesmo?
Continuação de boas escritas eu vou lendo aqui no meu silêncio
Quito, vocês deveriam ter tido um gesto de camaradagem: "se fica o Cunha, ficamos todos!"
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