Caça aos gambuzinos
O Benjamim era aquilo a que se chamava “um verdadeiro marrão”.
Apareceu no Bairro, oriundo da Pampilhosa da Serra e hospedou-se em casa do Rui Mesquita, salvo erro , no ano em que foi caloiro de Direito.
Viria a ser, depois de formado, Juiz numa comarca da Beira Alta. E chegou a ser, anos mais tarde, Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional.
Passava o tempo encafuado no seu quarto a estudar, donde saía à noite, apenas por breves minutos para ir ao café beber uma bica. Era de uma ingenuidade atroz e dela não se desemburrava pelo pouco convívio extra escolar que tinha connosco. Eu frequentava na altura o 2º ano da mesma Faculdade e, por isso, era dos poucos com quem ele conversava, durante as idas e vindas das aulas, normalmente para me pedir esclarecimentos sobre algumas matérias do curso, único tema com que verdadeiramente se preocupava.
Um dia porém, coisa pouco usual nele, abordou um assunto corriqueiro! Gostava muito de um casaco de cabedal que eu trazia vestido
Um dia porém, coisa pouco usual nele, abordou um assunto corriqueiro! Gostava muito de um casaco de cabedal que eu trazia vestido
- Onde o compraste? – perguntou-me deveras interessado...
Não sabia se ele já tinha ouvido falar em gambuzinos e nas histórias por demais conhecidas que giravam em nome desse “animal” inexistente. Mas aproveitei-me e, meio a sério, meio a sorrir, tentei:
- Mandei-o fazer! Este casaco é feito de pele de gambuzino.
- Gambuzino?!! – Que é isso?, insistiu admirado o Benjamim.
Percebi que nunca tinha ouvido falar da “caça aos gambuzinos” deixando-me mão livre portanto para planear uma caçada.
Expliquei-lhe que é um animal muito raro, cuja pele, de excelente qualidade possibilita a confecção de vestuário como o meu casaco, de que ele tanto tinha gostado.
Se ele quisesse, poderíamos organizar uma caçada, mas adverti-o de que tudo se teria de passar no mais absoluto segredo, porque a caça ao gambuzino era proibida por lei, para proteger aquele animal em vias de extinção.
- E como é que a gente sabe onde e quando o encontrar? – inquiriu o Benjamim.
- Bom, é um animal que paira a meia altura e por isso não deixa pegadas. É muito desconfiado e sentindo a presença humana, abriga-se e protege-se em troncos ocos das árvores. – elucidei eu.
O Benjamim estava entusiasmadíssimo. Estranhava que na Pampilhosa da Serra nunca tenha ouvido falar em gambuzinos.
- Isso não é admirar, disse-lhe eu. - Só há duas ou três zonas restritas no País onde eles existem. Uma delas é exactamente entre a margem norte do Rio Mondego e o Bairro. Ou seja, no Pinhal de Marrocos e zonas circundantes.
Combinámos que nessa mesma noite eu organizaria uma caçada, recomendando-lhe mais uma vez segredo absoluto , por causa da grave ilegalidade que isso representava. Eu sabia que o Benjamim era muito sensível a este argumento...
Chegado ao café do Silva, combinei com o Vitor Soares, o Feliciano, o Calado e o Zeca Mestre e por volta da meia-noite fomos buscar o Benjamim a casa, partindo todos em direcção ao pinhal de Marrocos. Démos-lhe um saco de serapilheira e munimo-nos de paus e latas, instrumentos indispensáveis à caçada.
Logo ao fundo da Quinta das Flores, escolhemos uma oliveira com um tronco oco e dissemos em surdina ao Benjamim para ele colocar a boca do saco no buraco da oliveira.
- O gambuzino vai sair por aí. Quando ele entrar para dentro do saco, fecha-lo e pronto...- explicou-lhe um de nós com voz sussurrada.
- Nós vamos afugentá-lo fazendo barulho com os paus a bater nas latas, para ele entrar na toca da árvore, no caso de andar cá por fora.
- Certifica-te que o bocal do saco de serapilheira tapa completamente a toca da árvore ouviste? O gambuzino é muito esperto e se deixas uma abertura, por pequena que seja, ele escapa-se! Fomos batendo os paus e gradualmente fomo-nos afastando.
Sentámo-nos ao cimo da escadaria da R. Pedro Álvares Cabral, medindo o tempo que duraria a paciência do Benjamim.Enfim, podia ter sido pior...
Mesmo assim, demorou duas horas a compreender o logro. Só o vimos subir a escadaria esbaforido e ameaçando-nos por volta das duas da manhã.
Rui Felício (arquivo 2010)
A história do Bairro Marechal Carmona na época, fazia-se de um encadeado de estórias como esta. Neste filme do passado, os protagonistas eram quase sempre os mesmos. E o autor deste conto real, não raras vezes fazia parte do elenco principal das "patifarias" tendo como pano de fundo a irreverência estudantil. Nessa época, todas as partidas que se faziam aos mais ingénuos e incautos, primavam não por uma atitude de rebaixar ou inferiorizar ninguém, o que frequentemente acontece nos dias de hoje. Foi essa a matriz que se perdeu. A piada genuína, que por vezes e muitas vezes, era mais uma manifestação de companheirismo para com a "vitima", que percebia esse código académico que visava integrar e não diabolizar ninguém. E este conto real, mereceu-me esta reflexão, que não passa de uma mera opinião pessoal, passível de contraditório.
ResponderEliminarAbraço, Felício
E uma história muito interessante e muito bem escrita, passado no nosso Bairro...mas o o Benjamim era mesmo o grande gambuzino
ResponderEliminarPara recordar os comentários de 2010 basta procurar em benjamim
Para ser mais fácil podem procurar aqui esta postagem em 2010
ResponderEliminarBENJAMIM 2010
Vale a pena reler os comentários!
ResponderEliminarValeu!
ResponderEliminarUm agradecimento ao Rafael pela repescagem desta história.
ResponderEliminarUma referência especial ao comentário do meu amigo Quito, pela sua costumada qualidade de escrita.