quarta-feira, 12 de outubro de 2016

MONSANTO ...






 Monsanto

Hoje, convido os leitores a vir comigo visitar Monsanto, vila cuja origem remonta ao período paleolítico, escondida nas profundezas deste rincão beirão e que dista cerca de vinte e cinco quilómetros da povoação de Idanha-a-Nova.

A vila impressiona qualquer viajante desprevenido, que, tal como eu, pela primeira vez visite o local vindo de Sul. O acesso faz-se por uma estrada  de bom piso e, após vários quilómetros de planície, eis que um enorme morro granítico e escuro se ergue na paisagem agreste e nada como recordar as palavras de Fernando Namora sobre Monsanto…”de longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu”… e, de facto, apenas os telhados de algum casario, nos faz perceber que chegámos ao nosso destino.

Subo então por uma estrada sinuosa, até a um pequeno largo fronteiro à igreja paroquial, onde deixo o carro, pois o acesso ao centro da vila é feito a pé.
As ruas são estreitas e escuras e, chegado ao coração da vila, viro à esquerda, subindo em direcção ao Castelo de Monsanto. A subida é íngreme, primeiro com casas escavadas na rocha de um lado e do outro do caminho, contrastando as que melhor estão conservadas, com vasos e canteiros floridos que lhe alindam a fachada, com outras que se encontram em estado de abandono, algumas já em ruínas. 

Após o último casario, entro agora por um caminho estreito, em terra batida, até que o Castelo, grande e bem conservado, se agiganta aos meus olhos. À esquerda deparo com a Capela de S. Miguel, do século XII, em razoável estado de conservação, bem como algumas sepulturas graníticas de um cemitério “paleo - cristão”.

Por uma porta larga entro no Castelo e tenho acesso a um largo terreiro. Subo então às ameias, onde a paisagem é deslumbrante e a perder de vista, com arvoredo disperso e alguns lagos a que na região dão o nome de “charcas”.

O monumento é do tempo do Condado Portucalense, tendo sido erigido sob a orientação de Gualdim Pais e entregue posteriormente à Ordem dos Templários, com a missão de repovoar e defender toda a zona de Idanha-a-Velha e Monsanto.

Após a visita, sento-me agora numa enorme fraga junto às muralhas e, dali, por momentos, contemplo as enormes rochas graníticas de forma arredondada, que em equilíbrio que parece instável, se encavalitam noutras rochas de forma bizarra, com a sua massa granítica de muitas toneladas, e dou por mim a pensar na tragédia de uma daquelas pedras rolar em direção à vila indefesa. 

Rapidamente, tento varrer da minha mente aquela visão apocalíptica, para os meus olhos se deterem agora no casario aninhado aos meus pés, naquele fim de tarde. Sinto-me longe do mundo e perto de Deus e, quase involuntariamente, dou comigo a rezar uma pequena prece, por intenção daquele povo.

Corre agora uma pequena aragem que me afaga o rosto, e resolvo regressar ao centro da aldeia. O percurso faz-se agora com rapidez. Entro num pequeno comércio local onde, entre muitos artigos à venda, destaco dois: as marafonas e os adufes. As marafonas são bonecas coloridas feitas de restos de tecido com armação em cruz e genuínas da aldeia. O adufe, de origem árabe, é uma pandeireta quadrangular bimenbranofone, exclusivamente tocada por mulheres. São célebres as Adufeiras de Monsanto, que no dia 3 de Maio – dia da Festa de Santa Cruz – sobem ao Castelo, tocando com vigor e mestria os adufes, enquanto as suas vozes e cantares inigualáveis, do alto das muralhas, ecoam e se perdem na planície sem fim, numa atmosfera que se afigura intemporal, quase de mistério. 

Saio do pequeno comércio e passo junto à casa onde residiu Fernando Namora, que ali viveu e exerceu a sua atividade de médico e de escritor. As suas experiências de vida em Monsanto, estão relatadas nos livros “Retalhos da vida de um médico” e “A Nave de Pedra”…

Por uma azinhaga estreita, encontro-me agora junto da Torre de Lucano, construída no século XIV sobre um enorme penedo e se de debruça sobre o abismo, qual sentinela avançada da aldeia a espiar os movimentos da campina. Detenho-me agora a olhar para o seu campanário e a réplica do galo de prata que foi conferido à vila, então aldeia em mil novecentos e trinta e oito, como a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, bem como o relógio da velha Torre, que de forma lenta e compassada, vai marcando o ritmo vagaroso de um Tempo sem tempo.

É hora de partir. Cruzo-me então com um habitante, que se dirige a mim. Sem mais rodeios pergunta-me a proveniência, até que nos sentamos junto da Torre, onde com as mãos cruzadas sobre a bengala que lhe sustenta o peso de nove décadas de vida, me vai falando de um tempo remoto, das privações e da fome dos anos quarenta do século passado, como que se justificando da sua dupla função de guarda - republicano e de contrabandista nas horas vagas, para complementar o seu magro salário e poder alimentar o rancho de filhos que a mulher lhe ofereceu pela vontade de Deus, amparados com desvelo no regaço da curiosa em funções de parteira, uma espécie de comadre que Namora também recorda.

Despedimo-nos então, com um longo aperto de mão, olhando-nos nos olhos e percebendo intimamente cada um de nós, que aquele é um adeus definitivo, pois nunca mais nos voltaremos a ver.

Meto-me no carro e serpenteio agora monte abaixo, entre aquele pesadelo de fragas, de novo citando Namora, para o automóvel progredir agora ágil e solto pela planície, com Monsanto a ficar para trás, plantada no meio da campina.

Não resisto e paro de novo. Saio cá fora e fico por momentos apreciando aquela simbiose perfeita da Natureza com o casario e pela última vez olho a Torre de Lucano, negra e altiva, guardiã da aldeia e desafiando os séculos, como que despedindo-se de mim e agradecendo a visita, e não posso de deixar de sentir um enorme respeito por aqueles meus irmãos, que vivem neste Portugal profundo, portugueses como eu, um povo heróico…
Quito Pereira    

             

6 comentários:

  1. Não foram precisas fotografias para ficar a conhecer Monsanto sem nunca lá ter ido, Quito. Que poder de observação. Estás como o vinho do Porto: quanto mais velho melhor.

    ResponderEliminar
  2. Comentário errado.Confundi com Sortelha!
    Mas também já fui a Monsanto!!
    Boa descrição desta aldeia histórica!

    ResponderEliminar
  3. Quito, ler um texto teu, numa manhã de outono, sintonizado com as negras nuvens, o sol que tenta espreitar, os pingos da chuva que ameaçam molhar-me a roupa acabada de estender na corda, o almoço que fervilha na panela... fico encantada e a recordar a aldeia de Monsanto que já visitei mas, não a consegui ver com os olhos e a sensibilidade descrita!
    Abraço-te, meu amigo.

    ResponderEliminar
  4. Visitei Monsanto num dia de muito sol. Não tive a coragem da Daisy e preferi ficar sentado à sombrinha, a meio do caminho, aguardando que a Daisy fizesse a visita ao Castelo.
    Com as fotos da Daisy e com este texto do Quito, estou mais do que esclarecido. Ia-me cansar desnecessariamente...

    ResponderEliminar
  5. A quem não conhece Monsanto, recomendo vivamente a visita. Afinal, Monsanto está tão longe mas também tão perto dos que gostam deste torrão onde nasceram. Monsanto é uma pérola longe dos conturbados dias de hoje. Longe da massificação. Longe das correrias para os empregos nos dias citadinos. Longe de taxistas em alvoroço. Longe de multidões ululantes em estádios de futebol.Longe de comícios e discursos inflamados.

    Monsanto é povo. Povo genuíno. Genuíno de generosidade. Genuíno de afetos. Genuíno na sua inocente forma de olhar o mundo fechado em que vivem, mais preocupados em sobreviver das suas courelas, do que da invasão amarela que se pressente,nestes cordelinhos por onde se movem as relações diplomáticas, gordas de sorrisos de circunstância e de conveniências mútuas.

    Em Monsanto, longe de burburinhos, podemos falar com o Tempo. Recordar Gualdim e o povo que fomos e somos, sem recalcamentos de patriotismo bafiento.

    Mas dá para refletir. De ouvir, do alto das muralhas do castelo, o que têm para nos dizer o Silêncio e o Vento que assobia em noites de invernia. Pergunto ao Vento que passa ... fala o poeta.

    E Ele - o povo Monsantino - refugia-se na sua Fé, certo que o seu destino e isolamento não necessitam de uma aturada explicação teológica. Tudo é por vontade Deus - dizem eles. Por Vossa vontade assim seja - digo eu.

    ResponderEliminar
  6. Há anos que penso ir a Monsanto e sempre vai ficando para a próxima. Mas, depois de ler o teu relato, Quito, a vontade de lá ir ficou ainda maior. Depois conto como foi. Obrigada e beijinhos para ti e para a São.

    ResponderEliminar