Não me calem as memórias ...
Hoje tenho que saudar Abril. Hoje tenho que saudar a
felicidade de não ver os meus filhos partir para a guerra. Porque eu parti para
a guerra.
Trago ainda comigo as chagas
de tempos proscritos. Não amordacem a alma dos que viajaram para um horizonte
incerto. Não passem uma esponja por cima da dor e do sofrimento, como quem
limpa de um quadro negro da escola, uma frase incómoda ou desadequada.
Nós, os que sofremos na carne a guerra crua,
exigimos que nos respeitem. Somos passado. Mas também somos presente.
Não me calem as memórias. Porque Abril é presente mas também
é passado. O passado que Abril livre me permite recordar em letras disfarçadas
de palavras, sem ter ninguém a meter o nariz no meu atormentado pensamento. A
esventrar a intimidade do meu sentir. A devassar os meus ideais sonhadores.
Naquele dia de Páscoa, nas margens de um rio Corubal largo e tranquilamente sinistro, um
simples tiro deu origem a um bombardeamento violento. Nós, na margem poente,
não tínhamos aquele potencial de fogo que vinha da outra margem. A coberto de
uma mata cerrada e deitados no chão, conseguimos confundir o inimigo impiedoso.
Para mim, aquele era o dia do Juízo Final. Pensei que a minha
existência terminara ali, naquele fim de mundo de árvores frondosas, abelhas em
fúria e capim. Naquela Guiné de mil perigos e mil mistérios.
Os soldados, os que acreditavam na Proteção Divina, erguiam
as mãos aos céus pedindo a Graça de continuar a viver. Das transmissões móveis,
pedimos aviões em lancinante grito de socorro. E foi do Céu que chegou o
milagre, cerca de trinta minutos depois que pareceram séculos.
Uma formação de dois caças Fiat, troaram por cima de nós. O
comandante daquela pequena esquadrilha de aviões identificou-se pela rádio e disse
em tom seguro e tranquilo de voz:
- Tenham calma, sou o Major Pimentel e vamos tirar-vos daí …
O bombardeamento sobre o inimigo foi pesado.
Deitados, sentíamos
o chão a saltar, como se fosse um tremor de terra, apesar do inferno ser agora
sobre o antagonista . Colunas densas de fumo negro e denso, erguiam-se no céu
em espiral, resultantes da vegetação a arder. Depois, quando as bocas de fogo inimigas
se calaram, os aviões picaram sobre o local e a rajadas de metralhadora
vomitadas dos caças , varreram tudo. Depois, apenas o silêncio. E eles, os
nossos salvadores, depois de se certificarem em voos rasantes que a missão
estava cumprida, partiram rápido e em silêncio.
Regressámos exaustos e todos, sem feridos nem baixas.
Não sei quem é o Major Pimentel. Hoje, provavelmente, também
já pertencerá à geração grisalha. Tal como o piloto do outro caça. Ambos fazem
parte da minha tribuna de heróis sem rosto.
Os dois pilotos, talvez hoje nem
tenham consciência de que muitos de nós lhes devemos a vida. Estou – lhes
grato. A eles e à Força Aérea. Profundamente grato.
Sempre que celebro Abril, não o faço no calor das ruas. É no
meu lar, na minha intimidade e envolto em pensamentos dispersos, que recordo
aquele momento de êxtase coletivo.
Mas, antes desse Abril libertador, antes de
um aclamado Salgueiro Maia e muitos outros terem protegido o nosso viver
coletivo, já eu tinha alguém que se cruzou comigo e me protegeu debaixo das
suas asas, não numa alegoria, mas no rigor das palavras e que me permite ter
hoje ao colo o meu irrequieto e amado neto.
Um anónimo, um tal Pimentel que,
naquele dia foi Deus na forma como O queiram interpretar, apesar de na escala
da nossa sociedade terrena ser, apenas e só naquela época distante, um distinto
Major da Força Aérea Portuguesa.
Quito Pereira
Coragem é sofrer e sobreviver ao medo.
ResponderEliminarTodos estes anos passados sobre o 25 de Abril que nos libertou da mordaça do Estado Novo, não esquecerei a espúria definição de coragem que António Barreto, que foi ministro da Agricultura e autor da famosa Lei Barreto e hoje acomodado num confortável e bem remunerado gabinete da Fundação Manuel dos Santos, Senhor do Pingo Doce.
Disse então o inefável “revolucionário de pacotilha”, vogando na onda oportunista da subita libertação popular, que coragem era a daqueles que, como ele, recusaram combater na guerra colonial, fugindo para a Europa livre.
Disse ainda que a culpa de a guerra se ter prolongado era dos que, em vez de fugirem como ele, tinham acedido a fazê-la colaborando com Salazar e com os proceres do regime.
O que ele não disse é que, oriundo de familia da alta burguesia, o tal Barreto se instalou a expensas dos pais endinheirados num caro colégio suiço onde estudou.
Coisa que a esmagadora maioria de nós não podia fazer.
E também não disse, porque não sabia, que o 25 de Abril foi paulatinamente gerado na formação de mentalidades e consciências que os milicianos iam incutindo nos soldados, na sua maioria analfabetos e sem compreenderem os motivos da guerra que eram obrigados a fazer.
Consciências adquiridas no sofrimeto da mata e que enformaram e explodiram em apoio total logo no prióprio dia 25 de Abril de 1974.
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O esplendido depoimento do Quito Pereira trouxe-me à memória o local onde sofri, naquele belo mas fatidico rio, o mesmo medo que ele tão bem descreve e o desgosto de ali ter visto perecerem para sempre onze dos meus soldados.
O mesmo medo que me fez apertar o coração noutros locais onde o ruido da metralha, o sangue, o cheiro a polvora nos entravam pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca.
Felizmente que o 25 de Abril que desejávamos chegou e se mantém o seu espirito.
O mesmo que me permite hoje, sem peias, dizer ao tal Barreto e a muitos outros como ele, que a coragem não se mede no conforto de um exilio dourado...
Rui Felicio
Apreciei muito este teu comentário à postagem do Quito.
EliminarÉ depoimento fabuloso e que devia ser lido por todos aqueles que "foram heróis e condecorados por terem fugido da guerra e portanto desertores"", para viverem em exilios dourados" e deixaram no terreno os seus camaradas, " que por obras valorosas, se foram da lei da morte libertadno, mais que permitia a força humana...."
EliminarRui, não reparei no teu comentário e só agora é que o li. O texto do Quito é excelente, já o disse e este teu comentário é extraordinário. Fiquei a conhecer melhor o merdas do Barreto. Se ele queria ser herói só tinha que se recusar a fazer o serviço militar, era preso e aguentava na cadeia. Dizer que é herói servindo-se do dinheiro e posição do papá, ninguém de bom senso chama a isso de heroísmo, trata-se, isso sim, de cobardia é oportunismo.
Obrigado Rui pelo teu comentário.
Um texto narrativo ao melhor estilo dos que o Quito tem escrito.
ResponderEliminarUm tempo de guerra impiedosa que só os que não "fugiram" tiveram que suportar!
Ainda bem que o tal de Pimentel não foi desses covardes, pois sentiam que da sua acção como militar da força aérea podiam sobreviver muitos dos camaradas que no terreno enfrentavam uma guerra, dificl, cheia de armadilhas e muitas privações!
Já outros textos o Quito escreveu sobre este tema e em todos eles trespassa este sentimento da dor que é suportar uma guerra em condições de vida ou de morte!
Mas felizmente esse tormento para muitos teve um fim e o regresso às famílias, o que não aconteceu com os que tombaram na luta e voltaram às também às familias mas sem poderem contar os momentos que por lá passaram. Honremos as suas memórias
Menina Dos Olhos Tristes
José Afonso
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Menina dos olhos tristes
o que tanto a faz chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
está mesmo quase a chegar
Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar
"
Meus amigos, estes vossos testemunhos deixam-me em pele de galinha, deixam-me emocionada, deixam-me me com sentimento de gratidão e de admiração!
ResponderEliminarBravos!!!
Tristeza pelos que secumbiram, feliz pelos que estão entre nós, todos fazendo a nossa História.
Corrijo: "sucumbiram".
ResponderEliminarAqui, também cabe repetir:
ResponderEliminarNão se esqueçam o mês de Abril!
Jamais se esqueçam, que a partir daí se abriu...
A porta para o "Dia da Liberdade"!
Jamais se esqueçam daqueles dias de muitos...
Submetidos a um regime ditatorial,
Dias que não vos deixaram saudades.
Apenas lembrem-se de dias assim,
Como alerta para evitarem tamanha
... Crueldade!
(Eu)
"CONTINUAÇÂO DO POEMA DE JOSÉ CARLOS ARY DOS SANOS
ResponderEliminarFoi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.
CONTINUAÇÂO DO POEMA DE ARY DOS SANTOS
ResponderEliminarPorém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
SEgue e termina...a seguir
CONTINUAÇÃO
ResponderEliminarNÃO TERMINA...
CONTINUA
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
Continua
Continuação e FIM
ResponderEliminare trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
F I M
Olha, eu em Cabinda dirigia um jornal, o Pongo! e do outro lado a partir de Banga estava PEPETELA. Ele fez uma grande romance (Mayombe) e eu tenho para aqui papeis que vocês nem imaginam
ResponderEliminarUm texto extraordinário!... Felizmente, livrei-me de tamanho inferno. Em Tavira, mesmo sem saber se seriamos mobilizados para a Guiné, todos os da minha especialidade conheciam de cor o mapa da Guiné e já pensávamos em Gabú, Bafatá e Catió.
ResponderEliminarCompreendo que seja impossível esqueceres esses anos ali passados.
Abraço.
Há um livro muito interessante que as pessoas devem ler. Chama-se "Os Flechas" e o autor é o Fernando Cavaleiro Ângelo. Há muita coisa que estão nos segredos dos Deuses.
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