quarta-feira, 29 de novembro de 2017

ANIVERSÁRIO DA IDA A LUA-Reposição de 21 de Julho de 2010 -Texto de RUI FELÍCIO


 Era domingo.Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transístores que nos mantinham ligados ao mundo.


Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.

Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas.Por mim, preferia meditar sobre o assunto, silenciosamente... Afinal os nossos avós jamais imaginariam que alguma vez o homem pudesse chegar à Lua, apesar de Júlio Verne, o visionário do século anterior, já o ter previsto…

E, longe das mais modernas evoluções da ciência e da tecnologia, os naturais da Guiné que nasciam e morriam na sua aldeia da selva sem nunca sairem do pequeno perímetro onde viviam, muito menos sonhariam com essa utópica possibilidade de o homem chegar à Lua.

Como muitas vezes fazia, depois de jantar, sentei-me numa cadeira de fula, onde descansava semi deitado, olhando o céu, nessa noite muito limpo e estrelado…Bem alto, a luz branca da lua, em quarto crescente, derramava-se pela orla da floresta e pelos cones de capim dos telhados das tabancas, desenhando sombras fantasmagóricas pelo terreno limpo do centro da aldeia.

E mantive-me assim deitado, o olhar fixo na lua, tentando perscrutar o mais pequeno sinal da presença do homem que eu sabia estar ali vagueando, em qualquer lugar do Mar das Tempestades…

Não sei quanto tempo assim me mantive, absorto, atento e quieto… Despertei e voltei à realidade com a voz do meu simpático amigo Samba, Chefe da Tabanca de Samba Cumbera, que me perguntava se podia sentar-se a meu lado, para o qual arrastara uma cadeira semelhante à minha…

Era um homem de grande cultura árabe, que conhecia muito da história do islamismo, que sabia com um estranho rigor a exacta direcção de Meca, que lia e escrevia árabe, que conhecia em pormenor toda a história dos Fulas e da razão de ser da sua permanência na terra da Guiné… Para onde, dizia, foram empurrados em sucessivas lutas tribais com os seus rivais Mandingas…

As nossas conversas eram normalmente muito agradáveis e, posso dizer, sempre aprendi mais com ele do que ele comigo…Temos a tendência e o preconceito de avaliar os outros, pelos nossos parâmetros e pela nossa cultura, catalogando-os de bárbaros e analfabetos só porque não têm o conhecimento e a instrução, medidos pelos nossos padrões.

Aprendi que no meio daquela gente, existiam homens com conhecimento mais vasto e aprofundado que muitos dos nossos soldados… O Samba era um deles…Perguntou-me porque estava tão pensativo e quieto… Respondi-lhe que aquela noite era muito especial para o mundo, porque estava se passando algo que nunca antes tinha acontecido…

Franziu o rosto, comentando que, pelo meu ar, não devia ser coisa boa… Sorri, dizendo-lhe que era exactamente o contrário…E, embora sabendo de antemão a resposta, perguntei-lhe apenas como forma de iniciar a revelação do que estava acontecendo:
- Sabes que neste preciso momento um homem como nós caminha na lua que está ali em cima diante dos nossos olhos?

A reacção foi inesperada e contrária a tudo o que eu teria imaginado:
- Alfero! Não é um homem como nós, não! É o profeta Maomé que, juntamente com Alá dali nos vigia a todos, para nos proteger, nos ensinar o caminho justo e para nos castigar quando dele nos desviamos…

E prosseguiu:
- Como é possivel que homem grande e instruído como o Alfero, só hoje soubesse isso? Não entendo mesmo!...

Pensei durante uns segundos se devia argumentar, puxar dos meus galões de homem civilizado, e demonstrar-lhe a minha suposta superioridade, provando-lhe que não era nada daquilo que ele dizia. Desisti de o fazer…

Afinal, ambos nos estávamos alimentando de sonhos… e, cada um à sua maneira, sentíamo-nos felizes pela beleza insubstituível de um luar africano em noite calma e límpída…Independentemente de quem lá estava caminhando naquele momento…

Rui Felício,
Ex-Alferes Mil Inf,
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
(Dulombi, Guiné, 1968/70)

P.S. - Passados dias, com a chegada de um jornal de Lisboa, mostrei-lhe as fotografias do astronauta pisando a Lua. E, então expliquei-lhe o que realmente se tinha passado naquela noite… Pelo seu ar meio trocista, ainda hoje não sei se o convenci… Mas como ele também não me convenceu que por lá andavam Alá e o Maomé, ficamos quites, cada um na sua... em paz!

19 comentários:

  1. Eu estáva em Angola.
    Via rádio ANGR9 (já não me recorda bem se era este o modelo).
    O aparelho era militar.
    Nunca mais me vou esquecer deste evento.
    Um Abraço.
    Dias.

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  2. Uma pequena história, escrita com a magia que só o Rui lhe sabe dar, um final interessante e com um PS de luxo!...

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  3. Falando do Rui Felício:

    Em 1969, quando o homem chegou à lua, já eu me tinha visto livre das minhas obrigações militares.
    Embora da mesma idade, somos ambos colheita de 1944, a sorte ou o azar levou a ver-me livre daquela coisa terrível que era a obrigação de "cumprir o serviço militar" mais cedo do que ele.
    A sorte, ou o azar, dispensou-me de ir até África.
    Penso que terá sido sorte porque não vivi os momentos dramáticos que ele viveu, que muitos milhares de jovens viveram.
    Penso que terá sido azar porque não recolhi a experiência, o conhecimento de outros povos e de outras gentes, de outras culturas e civilizações.

    Quase que sinto inveja - que é um sentimento deplorável - quando Rui Felício descreve o momento em que ele vai tentando ver Armstrong e Aldrin pisando a lua e o seu companheiro de observação vê claramente o seu Maomé e Alá.

    Ainda hoje, 41 anos decorridos, o respeito pelas convicções de Samba, o chefe de Tabanca, se mantêm.
    Parabéns, Felício.
    Aquele abraço.

    Carlos Viana.

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  4. Lembrar a chegada do homem á Lua lendo este texto do Rui, leva-me outra vez aquela fantástica noite em que este acontecimento se deu!
    Estavamos todos em casa bem instalados com uma ansiedade sempre crescente, até que o Armstrong e Aldrim poisaram mesmo os pés na LUA!
    Foi realmente uma sensação fantástica!
    E escrevi"bem instalados", porque ao ler este belo texto do Rui dou-me conta da diferença que foi ele ter acompanhado a chegada do homem á Lua, via rádo e em condições de guerra e nós pela televisão...loge de qualquer preocupação!
    Mas por outro lado também teve a sorte de ter em sua companhia um homem como o Samba...

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  5. Grande texto Rui !!!
    A descição daquele momento histórico para a humanidade, a forma como o viveste em circunstâncias tão especiais, os momentos de prosa que não são prosa ... são poesia.. "bem alto, a luz branca da lua em quarto crescente,derramava-se pela orla da floresta e pelos cones de capim dos telhados das tabancas, desenhando sombras fantasmagóricas pelo terreno limpo do centro da aldeia ...", Dou este exemplo de um momento de grande beleza literária. Estavas inspirado e prendeu a atenção de quem teve o previlégio de ler do prícipio ao fim. Naquela altura, enquanto andavas por lá, ainda eu estava por cá, já antevendo também a partida. Eram as malhas que o "império" tecia" ...
    Abraço

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  6. Rui
    Ainda aqui volto para te dizer que a São gostou imenso do texto. De facto, e ainda voltando a comentar, referir que a tua prosa também traz o "cheiro" de África. Impossível, para quem por lá passou, não sentir uma certa nostalgia. E até nesse particular o texto está muito bem construído. Estou em crer - digo eu que já não CONVERSO CONTIGO HÁ MUITO TEMPO - que ontem tiveste uma qualquer MUSA inspiradora que te deu aquele toque de magia de escritor de mérito.
    A São, veio aqui dizer para ter mandar um beijo repenicado. De mim, toma lá outro abraço ...

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  7. Grande inspiração! EXCELENTE!
    E para quem conhece a noite de África!!!?
    Parabéns Rui Felício.
    Abraço extensivo a todos os Sambas da Guiné!!!

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  8. Mesmo em ambiente de guerra,a tua capacidade de sonhar está bem expressa neste texto...
    O sonho a única "expressão" de liberdade que
    não te arrancaram,nesses tempos de opressão!!!
    Samba e Alfero deliciaram-me com o seu diálogo...troca de culturas e de misticismo...
    e o respeito pelas diferenças de pensar...
    Olha,Alfero,gostei muito.

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  9. Eu como quase todos passámos horas pregados à frente da Tv a B&W a ver imagens que só Julio Verne tinha idealizado há muito. Nessa noite estava a minha irmã Juca prestes a ter a minha sobrinha Paula, que fará amanhã anos. Dizem que a mudança de lua faz nascer os bébés, nessa noite devem ter sido os saltos de Armstrong na superfície lunar que fez rebentar ás águas.

    Parabéns Rui por este texto, como sempre tu és um excelente contador de histórias

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  10. Já comentei o texto do Rui... mas agora saúdo esta comentário do Pedro Sarmento!
    É um segundo "rebentar de águas"!!!

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  11. Rui, tens o condão de nos prenderes aos teus escritos!
    Muitos de nós vivemos com ansiedade e emoção essa noite de Julho,por cá, uma noite de calor intenso.
    A tua realidade era bem diferente da nossa e é bom partilhares a tua experiência,sobretudo da forma magistral como a descreves.
    Tal como o teu Samba, uma vizinha e amiga,senhora na casa dos 80,me dizia -Não pode andar lá ninguém na Lua,estou farta de olhar e nada vejo!

    Um verdadeiro salto para a humanidade!

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  12. Rui! Ainda bem que podemos ter um espaço onde escrevas.
    Quanto ao episódio, eu estava, neste dia no Porto com o Adriano Correia de Oliveira. Estavamos num Hotel na zona da Batalha. Passámos a noite ... a ver a TV no hall, mais para ouvir os comentários jocosos, incrédulos, alguns mesmo ordinários, dos empregados e dos poucos hóspedes do hotel.

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  13. A resposta vai ser longa. Desculpem-me. Mas sinto a vontade e a obrigação de vos agradecer a todos as palavras que tanto me emocionaram..

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    Imodéstia e falsa modéstia são duas posturas contraditórias, ambas detestáveis.
    Oxalá eu consiga não incorrer numa nem noutra, para vos transmitir, meus amigos, a emoção da leitura dos vossos comentários.
    Que me honram, que me orgulham, que me envaidecem.
    Corro o risco…

    Porque, de um despretensioso texto, foi possível despertar variados sentimentos que espelham as diferentes perspectivas com que cada um o olhou.
    O Tonito Dias, que habitualmente prefere a imagem às palavras, desta vez quis deixar claro que este assunto é daqueles que perdurará na sua memória.
    O espírito analítico próprio da engenharia, levou o Alfredo a sintetizar a sua opinião de uma forma que me leva à fronteira da imodéstia que não quero ultrapassar.
    Do Carlos Viana, cuja personalidade, coerência de princípios, seriedade e sensatez me habituei a admirar, ressalto a importância do destaque que deu, e que partilho, de sabermos respeitar as ideias alheias mesmo quando elas não coincidem com as nossas.
    O Rafael estabeleceu, recordando aquele memorável dia, um paralelismo entre as condições de acompanhamento do evento dele e dos seus e de mim próprio.
    A Olinda fez questão de lembrar uma verdade insofismável que é a de que o sonho, e eu acrescento, o pensamento, eram naqueles tempos das poucas coisas que o regime não conseguia acorrentar-nos.
    Os comentários da Celeste, pessoa que me habituei a respeitar e admirar desse miúdo, levo-os à conta da sua simpatia e amizade. E aqui, comovido, tropeço da linha da falsa modéstia que igualmente não quero ultrapassar.
    Do Pedro Sarmento, sublinho que o simples facto de aqui surgir um seu pouco habitual comentário, me volta a aproximar da linha divisória da imodéstia, convencendo-me que se o fez é porque reconheceu valor ao texto. O que me orgulha…
    O José Leitão, com uma simples frase, demonstrou ter sentido ( como me orgulho de o ter conseguido! ), aquilo que eu também senti enquanto escrevia o texto. Isto é, os cheiros, os silêncios, a humidade tépida, a auréola sonhadora e mágica das noites de África.
    O Rui Pato, por quem, não me canso de repetir, tenho uma enorme admiração, e cuja presença eleva e dignifica este blogue, destaca , como noutros comentários também é referida, a incredulidade de muitos sobre a ida do homem à Lua. Os velhos do Restelo ainda existem…
    Não por acaso, deixei para o fim a referência aos comentários do Quito e, inesperadamente, da São, aquela “rapariga” alegre e de bom humor cuja amizade me honra.
    Na verdade, os elogios do Quito distinguem-me e valorizam-me porque a apreciação ao que escrevo provém de alguém que sabe passar ao papel, como um verdadeiro escritor que é, queira-o ou não, aquilo que muito poucos conseguem fazer: - o sentimento e a sensibilidade humana…

    Por último, um agradecimento especial ao Rafael por manter este espaço onde é permitido o estreitamento dos laços de amizade entre todos nós.

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  14. Rui, depois do que anteriormente foi comentado, o que quer que escrevesse seria redundante...

    Mais um texto a inserir na compilação "Historias a Tinta Permanente" a publicar pelo Rui Felicio.
    E, se quando o fizeres, terás em mim um crítico tão rigoroso quanto amigo...
    Um franco abraço.

    C.Falcão

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  15. Que belo texto!
    Com ESTE PESSOAL aprende-se tanto...e partilha,amizade,solidariedade,respeito,boa disposição...
    FORÇA!

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  16. Pouco ou nada merece ser dito agora, que tantos já comentaram este excelente texto do Rui (talvez um dos melhores), que nos enquadra na memória deste acontecimento histórico, que foi uma enorme aventura da humanidade, face aos meios tecnológicos da altura ao nível computacional de qualquer actual computador portátil…(a ser verdade, pois há quem continue a afirmar que esta ida à Lua não passou do maior embuste do sec. XX …)

    O Rui Felício com a arte e magia da sua escrita, consegue fazer-nos a leitura das suas cogitações, em antítese, perante um meio primitivo e tão próximo da natureza, em que a mesma luz da lua que se reflectia e projectava em sombras os cones de capim das tabancas, ao mesmo tempo, testemunhava o ponto de partida desta grande aventura do homem no caminho das estrelas…

    Apreciei o reconhecimento (pelo que te conheço não me admira que o tenhas feito), de que ninguém é o detentor do conhecimento absoluto porque cada homem traz consigo a sua verdade e, a importância que tem para a Paz esta simples circunstância da aceitação de outros “verdades” na convivência permanente com o mutável e efémero.

    Sabes que tenho andado um pouco ocupado e por isso só agora, tardiamente, li este teu excelente texto e alinhavei estas parcas linhas.

    Um abraço e continua, ficamos à espera.
    Abílio

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  17. Meu querido Rui Felício, sabes bem que aprecio e muito os teus textos. Sigo-os também no FB onde era mais amiúde encontrar-te. SObre a minha pouca participação no blog, alguns dos nossos amigos sabem que tenho andado com a cabeça ocupada com coisas que mexem e bem connosco e só por isso tenho andado afastado do Cabrito de Sicó e não só, mas apesar de pouco comentar vou sempre espreitando para ver as novidades e saber de vocês. Para quem me conhece sabe que prezo a amizade e o respeito pelos outros, e apesar disso fui durante muito tempo quase "espezinhado" apenas e só porque era ADM do CS. Ouvi dizer que as pessoas tinham na ideia que eu era um "pau mandado" de terceiros, coisa que era e é profundamente errada. Tenho talvez um defeito para uns que para mim considero um virtude que é dizer sempre o que penso, e sei que isso nem sempre cai bem, mas como dizem os meus filhos, "temos pena", é assim que me sinto bem comigo mesmo.
    O Rafael pessoa por quem nutro muito respeito e carinho sabe que pode contar comigo como sempre contou (certo Rafael ?? ) e que a pouco e pouco voltarei a estar mais presente, penso que para agrado de alguns, talvez para desagrado de outros, mas pessoas como tu o Rafael e outros (perdoem-me não identificar os outros) merecem e que eu esteja presente, e eu agrada-me saber de vocês e ler-vos com frequência.
    Um abraço a todos.

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  18. Bem vindo Companheiro.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  19. A mim calhou-me fazer nesse dia o primeiro no COM em Mafra. Ainda nem tinha farda e lá estive no bar dos cadetes a ver a televisão que não foi desligada toda a noite.

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