Dança da tranca
(foto net)
Olhamos a Sé Catedral na sua estrutura em cantaria granítica
e penetramos no seu interior. É um templo Renascentista e Barroco, erigido na
época medieval, remontando aos séculos XIII ou XIV. Austero e na penumbra, tem
como chão a laje fria que lhe confere a solenidade do culto. Ao fundo, o altar e
a talha dourada abrangente que, associada a uma luz coada e difusa, dá ao
enquadramento um toque profundo de misticismo.
Sair daquele lugar religioso e sermos confrontados com um sol
fagueiro e desmaiado. Porém, a manhã está fria e há uma aragem saudável que nos
tonifica o rosto. Em frente à Catedral reconstruída no século XVIII pela mão do
Bispo da Guarda Dom Martin Afonso de Melo, olho o velho e simples casario,
habitado por gente modesta. As casas, de um único piso, parecem cosidas umas às
outras. Em cada casa, olha-se uma porta fechada e uma janela singela. E em cada
janela, um vaso de flores garridas. Ou um gato negro e pachorrento, a olhar o
movimento da rua e dos carros naquela orquestra ritmada do som dos pneus a rolar
na calçada bem conservada e limpa. Percorro com os olhos aquela carreira de
casas baixas e, do lado nascente, olho uma pequena entrada de portadas verdes.
É ali a taberna do Ti’ João. Um pequeno espaço escuro de mobiliário exíguo. Uma
mesa tosca de tampo redondo, duas cadeiras em madeira e uma prateleira em vidro
por detrás do balcão, de onde sobressaem rótulos coloridos de garrafas de
vinhos licorosos, algumas de feitio artístico. O balcão é velho e gasto pelo
uso. Na parede branca e nua, junto à única mesa do estabelecimento, nenhum
quadro pendurado na alva caliça impregnada da humidade visível pelos foles
dispersos espalhados como hematomas que sobressaem da parede estalada de sulcos,
maltratada e velha. Apenas um pequeno autocolante redondo de publicidade a uma
marca de cerveja, quebra a monotonia da degradação. Por detrás do balcão está
um homem baixo e atarracado. Tem uma cara redonda, uns olhos grandes e umas
bochechas bem vincadas que lhe emolduram o rosto. Uma voz calma e pausada,
medindo sempre cada palavra, moldam-lhe o caráter que respira franqueza e bonomia.
Ser taberneiro é profissão vulgar. Tão vulgar como a
dignidade de quem assim labuta pela batalha da vida. Mas ele – o Ti´João - não
é um cidadão qualquer. Será, quiçá, o homem que na Beira Baixa mais sabe da
arte do folclore. Um saber empírico é certo, mas um saber de experiência feito,
que o leva a ser respeitado nos meios daquela atividade popular. Conheci-o
quando dirigia o Rancho Folclórico de Juncal do Campo. Sentado de lado, eu via
os ensaios e reparava na forma diligente e a entrega daquele homem a uma paixão
da sua vida – a dança de raiz popular. Ensaiava o grupo quatro, cinco ou seis
vezes, ou as vezes que fosse necessário. E eles e elas, os tocadores e
dançadores, também dando com generosidade tudo o que tinham de si, para
tentarem roçar a perfeição nas danças de roda, nas contradanças, ou na dança da
tranca esgrimida por um único par, homem e mulher, à volta de uma simples vara
de madeira pousada no chão. Trata – se de uma dança frenética e de destreza, em
que o par dança alternadamente por cima da vara sem que lhe possa tocar com os
pés, para no fim saírem ambos a bailar. Esta dança tem reminiscências
românicas, havendo na Escócia danças do mesmo tipo. Geralmente, esta dança da
tranca é muito apreciada pelos povos sempre que o grupo se desloca pelo país.
Daí todo o empenho nos ensaios, porque sabiam que o ensaiador ali na sua frente,
era homem cordato mas exigente, que sempre lembrava que quando o grupo saía
fora de portas, era como se fosse embaixador da Beira Baixa. Apesar daquela atividade
lúdica, todos interiorizavam que havia uma responsabilidade e um patamar de
exigência e seriedade que era necessário e obrigatório respeitar. Algumas vezes
o Ti’ João me disse, em tom de desabafo, que tinha os seus detratores. Afinal,
aquela inveja mesquinha tão ao gosto de Portugal e transversal a uma sociedade
por vezes perversa e doente.
Há dias estive na capital da Beira Baixa. Percebi que as
portadas verdes da tasca do João se tinham fechado para sempre. Jamais saberei
se viverá de uma magra reforma da segurança social, ou se a sua avançada idade
lhe ditou o fim da existência terrena. Mas sempre recordarei aquelas suas
conversas versando o tema folclore, enquanto o cliente lhe pedia um
“traçado”, que mais não era que um copo de vidro baço, em que o vinho tinto se
misturava com uma pequena porção de gasosa, que o Ti’ João media
meticulosamente e a olho, como se estivesse nos laboratórios de um qualquer hospital
- trabalho científico. Mas sempre com o rigor que pôs na arte da dança popular,
vivendo e assumindo a sua condição de homem simples e bom que foi ou ainda
será, na sua avançada idade. Que ainda esteja entre nós, é esse o meu sincero
desejo. E de todos o que o estimam e o respeitam também.
Quito Pereira
O tempo que foi...
ResponderEliminarÉ isso mesmo! A lembrança que tinhas do Ti João, da sua taberna e das conversas sobre o folclore, passaram a recordação, pois passados os vários anos dessa convivência, nesta tua nova passagem pela velha Sé reparaste que a porta da taberna já se encontrava fechada.
Terá sido por este facto que resolveste escrever este texto, passando à escrita todas essas recordações!
Bom texto
Um abraço
Sim Rafael, são recordações. Ainda lembro os dois elementos que dançavam a "dança da tranca" : a Cristina e o Cristovão. Eles e muitos outros partiram dali prosseguindo estudos. Ao que sei, o Cristovão é Engenheiro Informático e a Cristina foi para a capital dedicar-se ao Canto Lírio. Parece até que teve a honra de pisar palcos do Teatro Nacional de São Carlos. E muitos outros. Dos mais velhos e que ainda vivem na aldeia, recordo o Cartaxo que zurzia no bombo sem dó nem piedade, e o João Esperança, já de idade simpática, que tocava reco - reco e se gabava de já ter ido 35 vezes a pé a Fátima. São memórias que ainda guardo de um Tempo ...
EliminarEm tempo: canto lírico ...
ResponderEliminarO Quito tem o condão de nos trazer assuntos que nos fazem lembrar o passado.
ResponderEliminarNão haja dúvida que quando uma pessoa passa muito tempo num local e depois o deixa, fica com uma ideia que tem que ir actualizando.
Estes senhores Ti ' João que foram havendo no nosso país, foram uma alma muito grande do nosso folclore que tem tendência a desaparecer com o desaparecimento dos Ti ’João quando partem pelos mais diversos motivos. Não quer dizer que seja este o caso. São pessoas de muito valor pois transmitem o que sabem com muita energia e que quase sempre trabalham no escuro pelo que não são conhecidos nem valorizados.
No "geral" o que é que a sociedade de hoje vai lembrar? Os jogos de telemóveis.
As memórias que o Quito nos relata quase passam a ser nossas!
ResponderEliminarApropriamo-nos dos lugares,das personagens,dos tempos...
Gosto sempre.