sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

CARTA ABERTA A MANUEL DA GLÓRIA







 Meu Caro Comandante

Ontem, gozando a noite fresca mas acolhedora da sua cidade, no meio de uma multidão que se passeava por entre esplanadas a abarrotar de gente a jantar em ar festivo, parei junto ao Mercado de Escravos, ali a um passo do seu antigo Quartel dos Bombeiros Voluntários de Lagos.

Hoje, para seu contento, posso dizer-lhe que os seus soldados da paz têm outro aquartelamento na parte alta da cidade. Um local amplo e estou certo que esta novidade o fará sorrir de satisfação. Como sei que gostará de saber que o velho quartel no coração da cidade, é hoje uma loja de três andares, onde poderá adquirir artesanato no primeiro andar, subir à biblioteca no segundo andar e sentar-se no terraço do terceiro andar, onde poderá tomar uma bebida e olhar o sino iluminado da Igreja de Santo António. E foi lá,  que o recordei e lembrei as tardes amenas na Quinta do Sargaçal, os almoços debaixo do caramanchão, as anedotas bárbaras e por vezes até brejeiras contadas em surdina.

Voltando à biblioteca do seu quartel onde tanto trabalhou em prol dos outros, é meu prazer confidenciar-lhe que a pequena divisão está muito bem aproveitada e de muito bom gosto. Há um equilíbrio entre os livros bem expostos, um velho gramofone que dá um toque de singularidade ao espaço e uma velha máquina de escrever muito antiga, porventura igual à Remington negra onde o seu conterrâneo médico, diplomata e escritor Júlio Dantas, construía as palavras de forma sábia, o que lhe valeu estar entre os eleitos da literatura portuguesa. Também o Comandante Manuel da Glória não passou pela vida de forma anónima. As gentes da sua terra, souberam reconhecer-lhe o mérito. Interventivo que foi como vereador da Câmara, cidadão impar, recebeu a medalha de ouro de serviços distintos, para mais tarde ter nome de rua na cidade.

Quero acreditar, meu caro Manuel da Glória, que vai ler esta carta. Como quero convencer-me que de novo estará junto da mulher da sua vida – a Dona Maria Eduarda - que de idade muito avançada e sem poder sobreviver sozinha, partiu para o Brasil para junto do vosso filho, deixando para trás e para sempre a cidade que tanto amava – Lagos. São os dramas da nossa existência terrena. Mas como na Vida Etérea não há Espaço nem Tempo, jamais a vastidão de um mar largo ousará separar-vos. Um dia, talvez um dia, eu vá visitá-lo ao Campo Santo desta cidade que também é um pouco minha. Mas não espere que lhe reze uma oração. Conhecê-lo como o conheci, vou antes contar-lhe a última anedota que o Marcelo me contou em casa do meu primo António Vermelho, à volta de uma mesa a comer uns belos carapaus alimados e um vinho tinto a gosto. E o Comandante do lado de lá e eu do lado de cá, vamos rir com prazer. Até ao dia em que nos voltemos a reencontrar debaixo do caramanchão onde a velha inglesa tomava chá na Quinta da Sargaçal, que para ambos foi de tão boa memória.
O Seu Amigo de Sempre
Quito Pereira

Cidade de Lagos, 18 de Agosto de 2017            

4 comentários:

  1. Uma carta aberta em excelente texto, das memórias de Quito por terras de Lagos.
    São amigos especiais De Manuel da Glória e doutros amigos em postagens anteriores que têm saído magníficos textos


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  2. Estou convencido que esta carta mesmo aberta, chegou ao destino.
    Abraço.

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