António Vaz, exemplar cidadão ...
O céu deu
uma trégua, nesta primavera molhada. Por isso, parti. Parti à desfilada por
essas estradas do interior de Portugal. Olhei as florestas que já não existem.
Mas vi os campos a convalescer da tragédia, num verde primaveril. Um hino ao
renascer da vida.
Aqui e ali, também as casas devastadas pela desgraça, voltam
a erguer-se pelo esforço dos homens no refazer da vida. Reparo, neste ou
naquele local, a azáfama da gente laboriosa que, pendurada em bancos ou em
escadotes, pinta as fachadas das casas de um branco imaculado, ou vão
refazendo telhados degradados, alindando o rosto dos novos lares com fé no
presente e no futuro.
Chegar a tempo de cumprimentar amigos. De falar da bela
Itália e do pandemónio do trânsito em Verona.
Depois, reiniciar a caminhada pelos campos da uma Beira esquecida. Olhar
paisagens familiares e, lá longe, a Serra da Estrela ainda agasalhada no seu manto
branco, a querer resguardar-se dos rigores invernais que já partiram, na mais
apetecida montanha em horas de lazer, entre farrapos de neve silenciosa, num
recanto de paz.
Por uma estrada estreita segui. Olhei a casa do Eduardo de
janelas fechadas. A moradia do Prata, plantada no meio do nada. Numa curva, a
estrada desce e ali, deparamos com o casario de Juncal do Campo.
Nada mudou. O casarão amarelo do Real que já partiu. A
paragem do autocarro, com o seu banco de madeira e telhado de zinco. E aqueles
que vivem nas proximidades e que na proteção da sombra acolhedora, procuram
alguma novidade que sacuda o marasmo dos dias no esgotar do Tempo. Entre aquela
sociedade juncalense, destaco o António Vaz. Tem o rosto mirrado num corpo
franzino. Encara-me e pressinto nos seus olhos humedecidos enquanto me abraça,
a lealdade da palavra honrada de um homem simples:
- Pensei que nunca mais o via …
Realmente, longo já é o caminho da Vida.
O Vaz vive sozinho, no velho casarão do Real. Convida-me a entrar pelas
traseiras da casa para provar a sua jeropiga. Impossível fazer a desfeita a tal
convite. Entro e, no compartimento escuro, vejo uma mesa de madeira. Sobre a
mesa, repousa um jornal aberto e uns óculos graduados. São os olhos com que o
Vaz decifra as notícias do semanário regional de inspiração cristã.
Então abre a garrafa e, sentados à
mesa frente a frente, fala-me de um passado que conheci. Dos dias de glória da
taberna que também era mercearia. Dali, pela porta entreaberta só vislumbro
escuridão e um cheiro à solidão que perpassa pelo balcão e pelas prateleiras
forradas de nada. É ali, naquela casa de dois andares, que o Vaz prolonga a
batalha pela sobrevivência. Como quem desfolha as páginas de um Tempo, vai-me
afirmando que é um homem feliz, apesar de viver só. O Centro de Dia fornece-lhe
as refeições e a magra reforma ainda dá para os seus modestos gastos.
Depois
falámos do Martins, que conduzia a camioneta da carreira vinda do Fundão e dos
jogos de “bisca”, com os passageiros dentro do autocarro à espera. Aquela
atitude do motorista sempre me fez confusão e tive finalmente a resposta:
quando a carreia vinha adiantada no horário, era ali que fazia uma pausa para
chegar à tabela a Castelo Branco.
Quis fazer um brinde. Um brinde ao
presente - disse - me, porque o caminho
nos seus mais de noventa anos já é curto. Não o contrariei. Tilintámos copos ao
presente e disse – lhe que breve voltaria para mais um brinde e um abraço.
Olhou-me com os seus olhos francos e fez que acreditou com um aceno afirmativo
de cabeça, num sorriso largo e gaiato.
Então, num mar revolto de emoções,
parti.
Quito Pereira