O Dr. António Lobo Antunes, é dos mais notáveis escritores
portugueses contemporâneos. Admiro as suas palavras ditas e escritas. Admiro a
sua escrita despojada de preconceitos e de palavras redondas de uma geometria
difícil do leitor entender. Admiro a forma como despe as palavras e desnuda a
sua própria alma de escritor de afetos. Ele - António Lobo Antunes - não é
Homem de omitir pensamentos, os seus pensamentos. Fala do que lhe apetece, com
a verticalidade do seu caráter.
Também fala de África. Da África dos tempos coloniais. E da
guerra. Da guerra crua e bruta. Mas também da harmonia dos afetos em tempos
revoltos. Diz:
“ Eu gostava muito dos
nossos rapazes. Eram corajosos, modestos e bons. Recordo-me de um oficial
cubano, desses que estiveram em África depois de nós, me dizer:
- Nunca vi soldados
como os portugueses.
E então eu compreendi
ainda melhor porque tínhamos sido nós a sair para o mar, cheio de monstros e
ameaças, em casquinhas de catorze metros (…). O que quero que fique bem claro é
a coragem dos miúdos de vinte anos, o seu espantoso espírito de corpo e o meu
orgulho de ter ganho a sua amizade (…). Muito depois, estava eu no Porto, num
clube chique, e vários deles que moravam por perto apareceram. O apresentador,
um professor da Faculdade, observou ao microfone:
- O António gosta muito
das pessoas humildes e eu tirei-lhe o microfone e disse:
- Os meus soldados não
são pessoas humildes, são príncipes (…). O maior orgulho da minha vida foi ter
vivido aqueles anos de tropa rodeado de heróis (…). O Zé Luís que, já sem
granadas de morteiro, venceu um ataque de very lights. O cabo Sota, apontador
da metralhadora, que desfez uma emboscada sozinho, de peito aberto, empoleirado
numa camioneta. (…). Vou conduzir daqui a nada o rebenta – minas e quero
apertar-lhe a mão para o caso de não voltar a vê-lo. Quando
eu voltar bebemos uma cervejola juntos Senhor Doutor, sou eu que convido.
Voltou-se devagarinho e foi-se embora. Ainda levantei o braço numa espécie de
aceno, que o João não viu porque não olhou para trás. Também não levantou braço
nenhum e as trevas não tardaram em comê-lo (…). Ainda pensei em chamar:
- João …
Mas não o fiz. Para
quê? A noite já o tinha comido. Portanto voltei para dentro, sentei-me à mesa
de tábuas de barrica mas não escrevi nada. O que podia escrever ? Limitei-me a
poisar o queixo na palma da mão até escutar o motor das viaturas que partiram”.
Assim escreve António Lobo Antunes na edição de hoje – 25 de
Agosto - da revista “Visão”. O aroma africano
da guerra bruta, embebido no elixir de afetos do escritor. Porque se guerra é
dor, também pode rimar com amor. E com a fraterna comunhão entre homens a
tentar superar dificuldades.
E eu, simples e anónimo escriba de uma escrita enviesada,
perante a estirpe intelectual do escritor, que não mete na gaveta a sua faceta
de homem de afetos, jamais terei o complexo de não escrever de um tempo de
guerra. À minha maneira, também não calarei as minhas memórias, omitindo
realidades passadas, como se aquele momento da nossa Historia, fosse uma
espécie de doença terminal de que se fala entre dentes e em surdina, numa
sociedade em que a vida é uma espécie de puzzle onde se encaixam apenas as ambições
pessoais e de matilhas organizadas em interesses corporativos.
Nesta fogueira
dos que assobiam para o lado, para quem um passado incómodo é apenas uma
espécie de relíquia de museu, sabe bem ler quem escreve com a pena dos afetos. Bem
– Haja, Dr. António Lobo Antunes.
Quito Pereira
Quito: nisto de médicos vou contar-te a minha experiência. Fiz a guerra em Cabinda entre 1970 e 1972, como oficial de reconhecimento, logo do comando do batalhão. No meu último dia morreu em combate, praticamente ao meu lado, o Jaime Silvério Marque, que era filho do governador-geral da Angola. Foi um grande amigo que perdi.
ResponderEliminarMais um excelente texto do Quito na mesma esteira de tantos outros com que nos tem brindado.
ResponderEliminarNele envolve também o escritor Lobo Antunes sublinhando o que escreve sobre Àfrica. de episódios passados em guerra.
São textos, que conforme já referi por várias vezes, engrandecem o blogue sobre o ponto de vista cultural.
Como ADM agradeço.