terça-feira, 17 de abril de 2018

O AROMA AFRICANO DA GUERRA BRUTA ...





O Dr. António Lobo Antunes, é dos mais notáveis escritores portugueses contemporâneos. Admiro as suas palavras ditas e escritas. Admiro a sua escrita despojada de preconceitos e de palavras redondas de uma geometria difícil do leitor entender. Admiro a forma como despe as palavras e desnuda a sua própria alma de escritor de afetos. Ele - António Lobo Antunes - não é Homem de omitir pensamentos, os seus pensamentos. Fala do que lhe apetece, com a verticalidade do seu caráter.

Também fala de África. Da África dos tempos coloniais. E da guerra. Da guerra crua e bruta. Mas também da harmonia dos afetos em tempos revoltos. Diz:

“ Eu gostava muito dos nossos rapazes. Eram corajosos, modestos e bons. Recordo-me de um oficial cubano, desses que estiveram em África depois de nós, me dizer:
- Nunca vi soldados como os portugueses.
E então eu compreendi ainda melhor porque tínhamos sido nós a sair para o mar, cheio de monstros e ameaças, em casquinhas de catorze metros (…). O que quero que fique bem claro é a coragem dos miúdos de vinte anos, o seu espantoso espírito de corpo e o meu orgulho de ter ganho a sua amizade (…). Muito depois, estava eu no Porto, num clube chique, e vários deles que moravam por perto apareceram. O apresentador, um professor da Faculdade, observou ao microfone:
- O António gosta muito das pessoas humildes e eu tirei-lhe o microfone e disse:
- Os meus soldados não são pessoas humildes, são príncipes (…). O maior orgulho da minha vida foi ter vivido aqueles anos de tropa rodeado de heróis (…). O Zé Luís que, já sem granadas de morteiro, venceu um ataque de very lights. O cabo Sota, apontador da metralhadora, que desfez uma emboscada sozinho, de peito aberto, empoleirado numa camioneta. (…). Vou conduzir daqui a nada o rebenta – minas e quero apertar-lhe a mão para o caso de não voltar a vê-lo. Quando eu voltar bebemos uma cervejola juntos Senhor Doutor, sou eu que convido. Voltou-se devagarinho e foi-se embora. Ainda levantei o braço numa espécie de aceno, que o João não viu porque não olhou para trás. Também não levantou braço nenhum e as trevas não tardaram em comê-lo (…). Ainda pensei em chamar:
- João …
Mas não o fiz. Para quê? A noite já o tinha comido. Portanto voltei para dentro, sentei-me à mesa de tábuas de barrica mas não escrevi nada. O que podia escrever ? Limitei-me a poisar o queixo na palma da mão até escutar o motor das viaturas que partiram”.

Assim escreve António Lobo Antunes na edição de hoje – 25 de Agosto - da revista “Visão”. O aroma africano da guerra bruta, embebido no elixir de afetos do escritor. Porque se guerra é dor, também pode rimar com amor. E com a fraterna comunhão entre homens a tentar superar dificuldades.

E eu, simples e anónimo escriba de uma escrita enviesada, perante a estirpe intelectual do escritor, que não mete na gaveta a sua faceta de homem de afetos, jamais terei o complexo de não escrever de um tempo de guerra. À minha maneira, também não calarei as minhas memórias, omitindo realidades passadas, como se aquele momento da nossa Historia, fosse uma espécie de doença terminal de que se fala entre dentes e em surdina, numa sociedade em que a vida é uma espécie de puzzle onde se encaixam apenas as ambições pessoais e de matilhas organizadas em interesses corporativos. 

Nesta fogueira dos que assobiam para o lado, para quem um passado incómodo é apenas uma espécie de relíquia de museu, sabe bem ler quem escreve com a pena dos afetos. Bem – Haja, Dr. António Lobo Antunes.

Quito Pereira   


  

2 comentários:

  1. Quito: nisto de médicos vou contar-te a minha experiência. Fiz a guerra em Cabinda entre 1970 e 1972, como oficial de reconhecimento, logo do comando do batalhão. No meu último dia morreu em combate, praticamente ao meu lado, o Jaime Silvério Marque, que era filho do governador-geral da Angola. Foi um grande amigo que perdi.

    ResponderEliminar
  2. Mais um excelente texto do Quito na mesma esteira de tantos outros com que nos tem brindado.
    Nele envolve também o escritor Lobo Antunes sublinhando o que escreve sobre Àfrica. de episódios passados em guerra.
    São textos, que conforme já referi por várias vezes, engrandecem o blogue sobre o ponto de vista cultural.
    Como ADM agradeço.

    ResponderEliminar