quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A CASA ASSOMBRADA


A CASA ASSOMBRADA



Era na única rua do Chão do Bispo que morava o Dr. Sebastião Nunes, chefe de secção no Banco de Portugal, à Portagem.
A casa era própria. Tinha-a comprado, ainda novo, aos herdeiros do antigo proprietário, o fidalgo D. Thomaz de Noronha. Ficou-lhe barata porque ninguém a queria. Dizia-se que estava assombrada.
Colocou-lhe na cimalha um dístico pretensioso em letras metálicas douradas cravadas no granito: 
Villa Sebastiana.
  

Na frente havia um jardinzinho que se encurvava para a esquerda, debruado a bucho de uns oitenta centímetros de altura, rasgado a meio por um pequeno portão de ferro forjado.
Os arbustos bordejavam todo o jardim, como um muro vegetal, sob o vão da varanda lateral do primeiro andar, que corria em volta de toda a mansão.
O Dr. Sebastião nunca casou. Não que acreditasse na maldição da casa onde, contava-se em surdina, o fidalgo D. Thomaz de Noronha tinha sido degolado pela sua mulher que em seguida se suicidou.
Mas à cautela, achava que era melhor não desafiar os espíritos malignos que o povo dizia que pairavam pelo casarão para levar para os infernos quem ali se atrevesse a viver maritalmente.
Para além de que, com a sua figura, teria sido difícil encontrar companheira.
  

O Sebastião era um homem grave, circunspecto, sisudo, de ventre proeminente e calvície brilhante.
As mãos popudas, de dedos curtos, seguravam uma eterna pasta de cabedal engraxado, feita de encomenda em pele de vaca, pelos presidiários da Penitenciária de Coimbra.
Nela trazia papéis da repartição, não com o fito de os ler, mas para agradar ao Director do Banco que assim ficaria a pensar que o zeloso funcionário levava trabalho para casa.
Na ponta do nariz abatatado onde medrava uma verruga, encavalitavam-se umas cangalhas de aros grossos.
  

Pesado e asmático, ajoujado ao peso da pasta e balouçando-se ao traulitar cadenciado do bastão encastoado a ouro, em que se apoiava para disfarçar o manquejar, era com grande esforço que vencia os dois degraus da porta de entrada.
Certo dia, enquanto esperava o trolley do Calhabé, uma prostituta sorriu-lhe, encostou-lhe o seio libidinosamente ao braço, sussurrou-lhe que o queria, e o Dr. Sebastião endoidou, sentiu o corpo estremecer de desejo, depois de tantos e tantos anos de abstinência e convidou-a a pernoitar na sua casa.
No dia seguinte, o Diário de Coimbra titulava a toda a largura da primeira página, que o ilustre Dr. Sebastião e uma mulher ainda não identificada, foram encontrados numa poça de sangue, abraçados um ao outro, no leito de um quarto da Villa Sebastiana, bárbaramente degolados.
  

Rui Felicio

--- reeditado ---

3 comentários:

  1. Na minha modesta opinião este texto é genial. Uma escrita brilhante em todos os aspetos. Um guião de um filme em apenas 50 linhas. Gostei muito. Só um escritor de grandes recursos tem talento para esta obra de arte. Muito bom !!!

    Um abraço

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  2. Obrigado Quito.
    Esta pequena história é ficcionada.
    Mas a origem é verdadeira.
    Com efeito, a cá a assombrada existiu e a lenda que sobre ela corria era aquela que eu descrevi.
    Sei que há gente que ainda se lembra.

    O nosso Calhabé é um manancial que permite dar asas à nossa imaginação.

    Nem sempre a inspiração o permite que essa é coisa que surge do nada.

    E tu sabes isso melhor do que eu.

    Um abraço

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  3. Mas é de facto por ser ficcionada como se depreende da sua leitura, que tem ainda um valor acrescido ...

    Um abraço

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