domingo, 29 de setembro de 2019

IN MEMÓRIAS & INSPIRAÇÕES José O Passeiro


" Estive ontem em casa de um vizinho que tem na sua habitação um lume. Um lume é, basicamente, uma fogueira no chão, com uma grelha de ferro por cima e uma chaminé no tecto por onde evacua o fumo da combustão.                                                Recuei  45 anos e percorri por momentos, em pensamento, a casa da minha avó paterna. Vivia no bêco de Stº António, em Eiras. Agora é de Santo António, na altura era apenas O Bêco. A casa era minúscula, mas adorável. Tinha uma cozinha de lume por baixo, e dois pequenos  quartos no andar de cima. A cozinha tinha como únicos móveis um mosqueiro, um armário, uma mesa , dois bancos e, na parede, uma grade de madeira com camarões  metálicos onde se penduravam os tachos e as cafeteiras. Os pratos, já um pouco desbeiçados pelo uso, eram colocados numa prateleira, que debruava a chaminé e era revestida com vistoso papel decorativo colorido, que se vendia propositadamente para esse efeito. Não havia electricidade nem água canalizada.  O lume estava aceso todo o dia. A ligação aos quartos era feita por umas escadas de madeira, regularmente lavada com sabão amarelo e encerada, mas já carcomida e esburacada pelo caruncho. Ladeava-a um corrimão do mesmo material e ao subir ouvia-se o ranger provocado pelo  peso dos anos. Ao cimo das escadas estava uma pequena mesa, onde pontuavam principalmente objectos de cariz religioso. Recordo-me de uma figura de S. Jorge a cavalo, perfurando um dragão com a sua lança. Mas não consigo lembrar-me se seria um quadro ou objecto de porcelana. Depois havia um relógio despertador daqueles com campainha por cima, e cujo ponteiro dos segundos, ressoava noite dentro de forma ensurdecedora. Na parede, estava pendurado um prato de porcelana com formato de folha de couve de repolho e 3 nozes em relevo. Apenas o facto de estar num sítio inatingível para a minha altura, impediu que o retirasse e verificasse se as ditas nozes, eram verdadeiras ou de barro. Os quartos eram simples. Camas de ferro, com colchões e almofadas de palha. O “meu” tinha a particularidade de quase poder bater com a mão no tecto de forro (esconso) mesmo estando deitado. Tudo era cozinhado ao lume. O café, cujo agradável cheiro eu nunca mais esqueci, era guardado numa velha lata cúbica, gravada com desenhos de galos nos 4 lados. Os talheres eram de ferro e cabo de madeira, mas a principal iguaria que me recordo de comer em casa da minha avó, dispensava o seu uso. Sardinhas fritas em pasta. A minha avó dizia que eu demorava menos a comê-las que ela a fritá-las. Fazia-o  debruçada sobre o lume, numa sertã preta, e utilizava um galho de pinheiro para as virar. Mesmo assim, não era fácil convencer-me a ir lá dormir e minimizar um pouco a sua solidão.                                                                                                     Normalmente eram noites de pesadelos com guerras infinitas entre dragões, relógios e São Jorges. Mas ela lá me convencia, puxando pela algibeira e retirando um cruzado, (4 tostões) que era invariavelmente trocado por rebuçados ou línguas de gato, no dia seguinte, na loja do António Carvalho. Depois adoeceu, foi para casa de uma tia minha, que tratou dela até ao fim, e eu nunca mais lá entrei…" in Memórias & Inspirações"

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