" Estive ontem em casa de um vizinho que tem na sua
habitação um lume. Um lume é, basicamente, uma fogueira no chão, com uma grelha
de ferro por cima e uma chaminé no tecto por onde evacua o fumo da combustão. Recuei 45 anos e percorri por momentos, em pensamento, a casa da minha
avó paterna. Vivia no bêco de Stº António, em Eiras. Agora é de Santo António,
na altura era apenas O Bêco. A casa era minúscula, mas adorável. Tinha uma
cozinha de lume por baixo, e dois pequenos quartos no andar de cima. A
cozinha tinha como únicos móveis um mosqueiro, um armário, uma mesa , dois
bancos e, na parede, uma grade de madeira com camarões metálicos onde se
penduravam os tachos e as cafeteiras. Os pratos, já um pouco desbeiçados pelo
uso, eram colocados numa prateleira, que debruava a chaminé e era revestida com
vistoso papel decorativo colorido, que se vendia propositadamente para esse
efeito. Não havia electricidade nem água canalizada. O lume estava aceso
todo o dia. A ligação aos quartos era feita por umas escadas de madeira,
regularmente lavada com sabão amarelo e encerada, mas já carcomida e esburacada
pelo caruncho. Ladeava-a um corrimão do mesmo material e ao subir ouvia-se o
ranger provocado pelo peso dos anos. Ao cimo das escadas estava uma
pequena mesa, onde pontuavam principalmente objectos de cariz religioso.
Recordo-me de uma figura de S. Jorge a cavalo, perfurando um dragão com a sua
lança. Mas não consigo lembrar-me se seria um quadro ou objecto de porcelana.
Depois havia um relógio despertador daqueles com campainha por cima, e cujo
ponteiro dos segundos, ressoava noite dentro de forma ensurdecedora. Na parede,
estava pendurado um prato de porcelana com formato de folha de couve de repolho
e 3 nozes em relevo. Apenas o facto de estar num sítio inatingível para a minha
altura, impediu que o retirasse e verificasse se as ditas nozes, eram
verdadeiras ou de barro. Os quartos eram simples. Camas de ferro, com colchões
e almofadas de palha. O “meu” tinha a particularidade de quase poder bater com
a mão no tecto de forro (esconso) mesmo estando deitado. Tudo era cozinhado ao
lume. O café, cujo agradável cheiro eu nunca mais esqueci, era guardado numa
velha lata cúbica, gravada com desenhos de galos nos 4 lados. Os talheres eram
de ferro e cabo de madeira, mas a principal iguaria que me recordo de comer em
casa da minha avó, dispensava o seu uso. Sardinhas fritas em pasta. A minha avó
dizia que eu demorava menos a comê-las que ela a fritá-las. Fazia-o
debruçada sobre o lume, numa sertã preta, e utilizava um galho de pinheiro para
as virar. Mesmo assim, não era fácil convencer-me a ir lá dormir e minimizar um
pouco a sua solidão. Normalmente eram noites de pesadelos com guerras infinitas
entre dragões, relógios e São Jorges. Mas ela lá me convencia, puxando pela algibeira
e retirando um cruzado, (4 tostões) que era invariavelmente trocado por
rebuçados ou línguas de gato, no dia seguinte, na loja do António Carvalho.
Depois adoeceu, foi para casa de uma tia minha, que tratou dela até ao fim, e
eu nunca mais lá entrei…" in Memórias & Inspirações"
Sem comentários:
Enviar um comentário