Há seis décadas que navego no caudal do Tempo. Seis décadas a
remar num mar de tormentas e de bonança. E hoje, aqui, neste rincão, sinto que
atraquei nas margens de um Lugar ausente. Freixial do Campo se chama este meu
cais de solidão. No coração da aldeia, sento-me junto do fontanário. Um ténue fio
de água vai caindo no regaço lodacento de uma concha feita de pedra tosca. Apenas
o barulho da água cristalina trespassa o silêncio da tarde clamorosa de luminosidade,
a contrastar com o granito escuro das casas humildes, alinhadas nas margens de
cada viela. Por ali, todos os dias, passam destinos cruzados. O Destino das
gentes que regressam da labuta da terra e lhe revolvem as entranhas na luta
pela sobrevivência. Mas há os outros. Os que, em grupo, sobem a rua estreita. Acolá,
no início da aldeia, a camioneta da carreira parou, para que se pudessem apear.
Vêm da cidade e, na mão, pendente entre os dedos, os sacos de plástico
transparente, onde repousa a marmita do almoço comido na fábrica, nos subúrbios
da cidade. Por momentos, é assim, quando o sol já se esconde para lá do
Moradal. A aldeia ganha vida para, como por magia e segundos depois, se
esvaziar e de novo mergulhar na sua letargia de séculos. De novo fico só.
Apenas a Ana, curvada sobre a bengala,
me olha com as suas faces rosadas e uns olhos grandes e expressivos. Dou comigo
a pensar como deveria ser bonita aquela mulher. Mas também dou comigo a refletir
que segredos, que tormentos, que sabedoria encerrará o Sacrário da sua cabeça
cansada, de cabelo liso derramado sobre os ombros. Ao lado, ali ao lado, é o
café do Calmeiro. De estatura avantajada, arrasta penosamente os pés, onde
moram umas enormes sandálias. Por detrás das fitas coloridas, pendentes na
porta, como obstáculo à entrada de moscas, chama-me para dois dedos de
conversa. Entro então no estabelecimento e o Calmeiro vira-me as costas. Lentamente,
dirige-se para o balcão de onde traz as duas bebidas que nunca me deixa pagar.
Regressa em silêncio, no seu passo lento, revelando dificuldades na locomoção,
as calças presas por um par de suspensórios, que vai afagando com um trejeito
que há muito lhe conheço. E é por detrás dos óculos grossos e gastos, sentado
comigo à mesa, que me fala da Vida. Das doenças e do desencanto. Dos filhos que
estão sempre no seu pensamento. Da mulher, companheira amiga de tantos anos, o
seu porto de abrigo que, com ele, partilha muitas horas de balcão, na esperança
de clientes que cada vez aparecem menos. No fim, sempre no fim, com a sua mão
enorme e avassaladora, cumprimenta-me num gesto de despedida. É um homem
emotivo, o Calmeiro. Fica sempre com uma lágrima no olho, na hora da partida. E
eu, de regresso às planícies sem fim, que se esgotam no horizonte da minha
pálida existência, vou meditando nos percursos esconsos da Vida. E se o
Calmeiro partir, pelos caminhos da Eternidade antes de mim, religioso que é,
rezar - lhe- ei uma breve prece, porque vou sentir a sua falta.
QP.
Reeditado em Memória de Francisco Calmeiro.
ResponderEliminarNesta reedição reproduzo algumas linhas que escrevi então
ResponderEliminarÉ um relato que impressiona e que não nos deixa indiferentes pela descrição que faz do amigo Calmeiro:"De estatura avantajada, arrasta penosamente os pés, onde moram umas enormes sandálias" Estou a vê-lo à minha frente - e nunca o vi!
Duas bebidas afinaram as gargantas para o amigo Calmeiro desfiar o que lhe vai na alma, os seus lamentos, a ausência dos filhos, as doenças e o desencanto pela vida que carrega,agora na velhice e partilhada por sua mulher!
Como os clientes são poucos e talvez pouco conversadores, estou convencido que sempre que o visitas será muita a sua satisfação!Nestas circunstâncias tu, Quito,és o amigo certo que o amigo Calmeiro gosta para conversar!
Obrigado Rafael. Cá continuamos a dar corda ao relógio ...
EliminarQue belo texto:a semana passada dei uma volta aqui onde moro e vi pessoas que conheci ha trinta anos...nesse tempo posso dizer eu ainda era jóvem.
ResponderEliminarpassados estes anos reconheci muita gente e fui reconhecida demos os bons dias dois dedos de conversa e fomos ao nosso destino.Como nós estamos a envelhecer. O Tempo passa depressa bjs.
Obrigado Lucinda. Jamais esquecemos o nosso amigo ...
EliminarLeio este texto lindo e emociono-me. E lembro-me que, hoje de manhã, olhei para ti e, ao ver-te só e pensativo,pensei que estarias a imaginar um dos teus maravilhosos textos. Coincidências...
ResponderEliminarObrigado, Ló. O que me traz pensativo é o estado débil do meu pai. Da última vez que fui à aldeia da Beira Baixa perguntei pelo Francisco Calmeiro e tive a notícia que não queria ouvir. Daí o texto em sua homenagem póstuma.
EliminarUm abraço
O Calmeiro que partiu antes de ti pelos caminhos da Eternidade mereceu por certo a tua prece.
ResponderEliminarAntes disso já o tinhas dado a conhecer num texto fabuloso que já antes tinha lido e que nunca esqueci.
Parabéns Quito
Obrigado, Felício. Já agora a dizer-te que sempre que revisito aqueles lugares constato uma desertificação galopante ...
EliminarUm abraço