segunda-feira, 9 de setembro de 2019

O HOMEM DA SALEMA ...




Salema 

O café é pequeno e acolhedor. Tem muito de familiar e os clientes conhecem-se todos uns aos outros. No verão, a clientela cresce pela chegada dos turistas e eu, pelos anos que já o frequento, pois o estabelecimento fica no sopé do meu lar algarvio, subi há muito ao estatuto de vizinho. A Nice, pequena e ladina, sempre que todas as manhãs me vê entrar de jornais debaixo do braço, logo diz do alto do seu metro e quarenta e três de altura:” vai uma torradinha, ó vizinho?”. Sim e é sempre assim. Então gira à vida e com enorme paciência vai atendendo turistas apressados e espanhóis inseguros nas suas preferências, que pedem isto para logo desistirem e pedirem aquilo.  Um purgatório !

Naquela manhã, o café estava cheio de clientes. Sentado numa mesa, eu lia distraidamente  um jornal. Então, entrou um rapaz magro, já na casa dos trinta anos bem medidos. Tinha um rosto pálido que sobressaía no colarinho da sua camisa negra. Um cabelo preto afogado em gel dava – lhe um ar de bailarino de tango.  Após verificar que a minha mesa tinha uma cadeira vazia foi educado – pediu licença depois de já estar sentado. Sem rodeios, disse-me que eu era parecido com um primo dele. Afinal, pretexto para conversar e quebrar o gelo da indiferença. Com um pastel de nata à frente, foi mexendo em ritmo rápido a colher com que adoçava o café com o açúcar em pacote que a Nice diligentemente lhe tinha posto no pequeno pires que sustentava a chávena com a bica a escaldar. Depois, sem fôlego, foi-me dizendo que, apesar de novo, já era homem de muito mundo. Viveu na África do Sul e depois veio para Espanha, onde conduziu um camião por estar legalmente habilitado para o fazer. Em jeito de queixume, disse-me que trabalhava muito para lá do horário normal sem qualquer compensação monetária ou um simples agradecimento. Despediu-se e regressou ao seu Algarve, onde alugou uma casa grande na pequena povoação da Salema, na rota de Sagres. Com o dinheiro amealhado, foi compondo o seu ninho, comprando mobília para se sentir confortável. Então, a conversa azedou com o senhorio, que lhe falava constantemente num aumento de renda. Pensou então em sair da aldeia  e na cidade de Lagos procurou novo ninho. Foi difícil, com preços proibitivos que não podia pagar. Finalmente, conseguiu um pequeno estúdio que estava dentro do seu orçamento. Mas ficou agora o drama do que fazer à mobília da casa da Salema. Quis vender o que tanto lhe tinha custado a ganhar fora de fronteiras ou fazendo biscates de eletricista, que era do que sobrevivia. Mas só lhe apareceram interessados nos seus haveres oportunistas, dispostos a levar tudo por dez reis de mel coado. Mas o homem da Salema vai resistindo aos abutres. Depois bebeu a bica num sopro e engoliu o pastel de nata que lhe encheu a boca toda e partiu, certamente a pensar como vai resolver o problema de ter mobília a mais para casa a menos, ou seja, como é que vai conseguir meter o Rossio na Rua da Betesga.
QP        

5 comentários:

  1. Quando li Salema....pensei que seria uma estória sobre Mariema!!!
    Mas não foi passada bem mais perto...
    Nesta tua 2ª cidade já és bem conhecido e no café até parece que estás no Bairro.
    O amigo de ocasião foi o motivo para este texto, dando conta da sua vida atribulada pela estranja e o recomeço da mesma por Lagos.
    As dificuldades escontradas nos tempos que correm com o aluguere de casa, para mais em cidade turistica.Começou em grande e terminou em pequeno: uma mobilia no T e tantos não cabe num T1.
    Não se pode ter tudo.Salema foi pouco mais que uma miragem!!!
    Mas deu est belo texto, que agradeço!

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  2. Uma crónica que se lê de um trago.
    Impossível interromper sem chegar ao fim.
    Um retrato de uma vida madrasta naquilo que ela tem de mais difícil que é o declínio de um conforto obtido a custo para um patamar de sobrevivência que os oportunistas em vez de ajudarem se aproveitam carregando na desgraça a troco de obterem uma pechincha por dez reis de mel coado.

    Afinal, nada que não seja infelizmente a matriz da natureza humana.

    Outros retratos porém sobressaem desta crónica.
    Refiro-me às provérbios indecisões dos turistas espanhóis que ora querem uma coisa ora no minuto seguinte se arrependem para afinal quererem outra.

    E até, inocentemente, o Autor acaba por fazer um auto -retrato.
    Com efeito, a imagem de marca do Quito Pereira, é a educação, a predisposição para ouvir os interlocutores , para observar os pormenores que escapam aos olhares comuns.

    E que são na realidade próprios e indispensáveis ao escritor que depois os verte de forma sublime a um texto como este que nos atrai a leitura.

    Gostei Quito.

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  3. Correcção :

    Em vez de "proverbios", "proverbiais "

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  4. O Quito tem o condão de atrair as personagens certas para os seus escritos! Assim, chegam-se entre o pastel de nata e a torrada.

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