segunda-feira, 2 de setembro de 2019

OLHAI, SENHORES ...



O velho "Max" dos anos 60 do século passado ...

Era uma rua quase anónima na malha urbana de Lisboa. Uma rua escura e sem vasos com flores viçosas nas janelas. De realçar, apenas uma velha loja com caixotes à porta, onde se exibiam melancias e melões. E, espetados numa cana em velhos pedaços de cartão e a tinta negra, o preço por quilo dos frutos apetecidos. Lá dentro e arrumados com pouco critério, os bens essências para a alimentação e produtos de limpeza. No balcão, também um frasco transparente contendo rebuçados coloridos – a alegria da criançada.  Também um pequeno pipo com uma torneira de madeira que abria a compasso. Nos fins de tarde e depois da labuta do dia, os homens juntavam-se ali para beber um copo de vinho que ajudava a uns momentos de conversa sobre as contrariedades da vida. Depois regressavam a casa e, pelas portas estreitas, subiam as escadas escuras de madeira porque não havia elevador, com uma lanterna que debitava uma luz ténue e uma mão no corrimão de ferro ferrugento e delgado, que feria os dedos nas suas arestas afiadas. Ao fundo da rua, havia um parque com uma palmeira ao cento e quatro bancos verdes nos cantos que convidava os reformados ao lazer. Eram porém os miúdos quem ali jogava com uma bola de trapos e ao pião. Depois, a rua inclinava levemente para mostrar um bairro com um nome arrepiante – Curraleira. Um tumor social, uma das muitas chagas da cidade. Era chapa de zinco contra chapa de zinco, casas de madeira de tábuas velhas e nas ruas estreitas bidons de lata com água para uso da população. A Curraleira tinha a fama e o proveito do tráfico de drogas leves e duras. Por vezes, a polícia aparecia em força e era o alvoroço. Correrias pelos becos de terra batida, gritaria das mulheres que, com pequenos filhos ao colo com o ranho a cair do nariz, invectivavam os guardas que invariavelmente encontravam heroína e levavam dois ou três residentes para a esquadra. Ali, perto do outro extremo da rua escura e numa esquina, havia o cinema “Max” das sessões contínuas. Á noite, a assistência masculina ocupava as cadeiras num tumulto, para ver filmes de heróis e vilões. De pistolas a cuspir fogo e os justiceiros a dizimar os bandidos, de resto como a assistência exigia. Então, aparecia sempre a mulher – fatal, de vestido vermelho colado ao corpo e meia negra na perna bem moldada em movimentos aparentemente inocentes. Naquele cenário, uma cadeira onde ela com cara de anjo pousava suavemente a perna para mostrar a liga que envolvia a coxa roliça e branca. E eles, a turma de mirones, espremidos contra as costas das cadeiras e soterrados de desejo, a abençoar o preço módico que tinham dado pelo bilhete. Ninguém diria que aquele rincão da capital era ali a dois passos da Fonte Luminosa, do Instituto Superior Técnico e do Cinema “Império”, que nas tardes de domingo enchia a sala. O gong tocava para o início da sessão. As luzes do teto esmoreciam e, invariavelmente, aparecia este ou aquele cinéfilo mais atrasado que era levado ao lugar pelo empregado do cinema que indicava o lugar com uma pilha e, com a sua farda cinzenta com as golas do casaco debruadas a vermelho, punham a mão em concha na esperança da gorjeta que ajudasse a compor o orçamento familiar. Outros, menos abonados e sem dinheiro para espetáculos, corriam para o campo pelado da Picheleira, onde o futebol amador tinha o seu esplendor no Vitória de Lisboa de vermelho vestido, a correr atrás de uma bola para gozo da gente simples. O Vitória jogava sempre de manhã e tinha a sua legião de seguidores. Por essa altura, já a menina das tranças louras e laçarotes no cabelo, tinha ido à leitaria com a incumbência de transmitir à senhora de bata branca que queria o leite bem medido para o recipiente que a criança tinha levado de casa. Na primavera, com o colorido das roupas a drapejar ao vento e a secar nos estendais das janelas, ouvia-se nas ruas em alto registo, um qualquer fado lisboeta na voz rouca e castiça de Alfredo Marceneiro ou da exuberante Hermínia Silva. Era a forma talismã dos pequenos estabelecimentos de cafetaria chamarem a atenção da clientela e das tertúlias daquele feudo da capital. Em cima das mesas toscas de tampo em fórmica e ao dispor do cliente, era o “Diário de Lisboa” rei na informação e das notícias filtradas conforme os interesses do governo vigente na época, que era lido avidamente no calor de uma bica a escaldar. Eram as manhãs de cetim, no dizer da poetisa. Tempos que o Tempo levou …

“ Olhai senhores, esta Lisboa de outras eras”
( do fado Lisboa antiga )
(José Galhardo/ José dos Santos)
QP     

8 comentários:

  1. A taberna do Joaquim morreu. A Curraleira deu lugar ao complexo residencial das Olaias. O cinema "Max" é agora local de culto religioso. O cinema "Império" foi vendido à IURD. O Vitória Clube de Lisboa joga na Picheleira mas em relvado sintético, a substituir o pelado onde se esmurravam os joelhos ... aburguesou -se !!!

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  2. Um bom texto para com imaginação se voltar a uma parte da Lisboa antiga.
    São nomes que passados tantos anos ainda nos lembramos deles.
    Os tempos mudam e esses locais, como outros, dão lugar a nova zonas modernas e os edifícios se resistem viram utilizações diferentes.

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  3. Lisboa Antiga
    Amália Rodrigues

    Lisboa, velha cidade,
    Cheia de encanto e beleza!
    Sempre a sorrir tão formosa,
    E no vestir sempre airosa.
    O branco véu da saudade
    Cobre o teu rosto linda princesa!

    Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras,
    Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
    Das festas, das seculares procissões,
    Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!

    Lisboa, velha cidade,
    Cheia de encanto e beleza!
    Sempre a sorrir tão formosa,
    E no vestir sempre airosa.
    O branco véu da saudade
    Cobre o teu rosto linda princesa!

    Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras,
    Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
    Das festas, das seculares procissões,
    Dos populares pregões matinais que já não voltam mais

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  4. E eu que julgava que o Quito apenas tinha deambulado pelas provincianas Coimbra, Castelo Branco e Lagos !

    Afinal, pela rigorosa descrição ele também andou pela cosmopolita Lisboa.

    E ainda bem.

    Só assim nos podemos deliciar com os pormenores desta crónica marcado pelo estilo inconfundível da sua escrita.

    Um abraço

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    Respostas
    1. Obrigado, Felício. O teu comentário dá-me azo a alguns esclarecimentos. Realmente com família naquela zona de Lisboa, cedo conheci a Praça do Chile, a Avenida Morais Soares, a Fonte Luminosa, a Penha de França e a zona do Alto do Pina. O texto poderá dar a ideia que o Bairro era uma zona de marginalidade que não era. A esmagadora maioria da população vivia do seu emprego e trabalhavam quase todos na Baixa lisboeta como empregados de balcão em bancos, lojas de fazendas, ourivesarias, cafés, no porto de Lisboa ou em alfaiatarias e em lojas naquele tempo muito em voga - penhores. A Curraleira era realmente uma bolsa problemática de pobreza, mas uma ínfima parte em área do bairro de lata do Aeroporto , que era um belo cartão de visita de quem aterrava em Lisboa. Curiosamente, a Curraleira tinha uma estranha ética e código de honra. De dia e de noite, quem atravessasse o bairro em direção à Picheleira, não tinha que ter medo de nada, se fosse habitante da zona e eles conheciam. Mas qualquer estranho, era logo interpelado. A razão era simples - eles desconfiavam que era policia à civil.

      Este texto foi escrito devagar, tentando ser fidedigno e fazendo um esforço de memória. Afinal tudo isto foi há 6O anos ainda eu não tinha barba na cara e tinha muito ainda que esperar. À minha maneira, tentei que fosse um pequeno "documento" daquela época de um local de Lisboa. A história da cidade Lisboa é somatório de muitas histórias de tantas zonas e bairros da capital, cada um com as suas particularidades. A nova vitória nas Marchas de Lisboa pelo Alto do Pina, é a prova de uma zona viva de gente que se orgulha do seu bairro, ainda que modesto. E ainda bem que assim é.
      Um abraço, Rui !

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  5. Conheci bem os locais que referiste.
    Especialmente o cinema Império onde fui muitas vezes ver cinema ou na parte de baixo o café Império onde ia com frequência ao fim do dia para beber uma imperial ou comer qualquer coisa.

    Onde ia muitas vezes era ao Largo do Leão do qual se descia até à praça do Chile.

    É que no dito largo existia a Delfieu onde comprei alguns pares de calças à boca de sino directamente importadas de Paris de onde era oriunda a dona da Boutique.

    Eram o grande luxo de Lisboa.

    Quanto à Curraleira sabia onde ficava mas nunca lá entrei.

    Nessa altura eu morava na Av. Riviera País mesmo ao lado do Técnico.

    Por isso essa zona da cidade me é tão familiar.

    Um abraço Quito

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  6. E verdade, Rui ! Lembras bem o café na parte de baixo do Império. Juntavam-se ali tertúlias a beber umas imperiais e a comer umas tapas. Obrigado pela lembrança.

    Um abraço Rui

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