Foi um Tempo ...
Todas as semanas - todas as santas semanas – pressinto nas
páginas do “Jornal do Fundão” o cheiro acre da solidão. Um jornal de referência,
que luta bravamente contra a desertificação do Interior de Portugal. Porém,
nota-se ano após ano, que os nossos compatriotas da zona mais raiana estão cada
vez mais longe e cada vez mais sós.
Há dias, vogando pelas vielas desertas de um Tempo que já foi
de bulício e de vida, dei comigo a olhar para uma mulher que cautelosamente me
abriu uma nesga da porta, como que desconfiada. Ela, a mulher, tem hoje no
rosto as marcas vivas de uma existência sofrida num cabelo em desalinho.
Ninguém dirá que é cabeleireira, embora os clientes sejam escassos naquele seu
local de trabalho acanhado. Demorei - me a olhar-lhe o rosto depois de a
saudar. E, quando a porta se fechou num gemido seco num novo reencontro com a
solidão, recordei como ela e outros foram a alma do Rancho Folclórico da
aldeia. E ele – o Rancho - foi como
muitos outros um digno embaixador da Beira Baixa e dos usos e costumes das suas
gentes.
Mas tudo acabou. A desertificação, a deslocação dos jovens
para os grandes centros e o envelhecimento dos mais antigos ditou lei. Ficou o
museu, que tem hoje guardado todo o espólio daquele grupo de danças e de
cantares. Já não há o João a ensaiar o grupo. O Cartaxo a tocar o bombo. A Lurdes o adufe. O João Esperança o reco –
reco. O Matos o cavaquinho e o Adelino a concertina. Nem os moços de braços
erguidos no estralejar de dedos, na celebração de um Tempo que tinha muito de fraterna
cumplicidade de uma comunidade lá para os lados da Serra da Raposa. Nem elas,
as moças de saia rodada e leveza no pé que, com as suas caras bonitas, davam a
cada arraial um arco de alegria e de cor.
Tudo morreu. Ruas desertas, onde apenas o sino da igreja não
se rende no anunciar soturno das horas que não existem. E, nos caminhos de
poeira, apenas este ou aquele rebanho e o seu balir numa sinfonia de chocalhos,
como que a pedir compaixão por um Tempo que já não volta numa oração de
ausência.
QP
"A vida é composta de mudanças"... Mas ficam os registos escritos do amigo Quito que, com a sua sensibilidade e arte, os deixam a perpetuar na memória. Uma oração de presença!
ResponderEliminarConcordo com a Celeste Maria e também sinto o teu texto que é um autêntico poema.
ResponderEliminarQue Belo Texto...não digo mais.
ResponderEliminarUm Abraço.
Eu já nem sei que te diga, Quito! Tu próprio verificas que o Jornal da Fundão está nesta luta... mas achas que não deves enviar-lhes estes teus textos para publicação?!
ResponderEliminarSe eu estivesse na minha terra e te apanhasse na rua, chamava os meus amigos e fazíamos-te uma barrela! Com urtigas!
(para quem não conhece as "barrelas" à moda da Beira Interior, é um grupo agarrar um rapaz, abrir-lhe a portinhola das calças e atirar lá para dentro o que estiver à mão... normalmente terra, pedras, plantas,... sem perda de generalidade)
Credo, Paulo ! Já me estou a imaginar com um furão que é um animal carnívoro dentro das calças !!!
EliminarDepois de ler este teu texto concordo com o Paulo Moura em que devias colaborar com o Jornal do Fundão nesta luta contra a desertificação.
ResponderEliminarEste texto devia ser lá publicado....
Ouviste tocar o bombo e apareceste logo !!!
EliminarQue não seja à falta de email...
ResponderEliminarredacçao@jornaldofundao.pt
Se não quiseres enviar posso enviar o link do EG com a postagem e comentários.
Tu, caro Rafael, tens no teu blogue a exclusividade do que vou escrevendo para os amigos.
ResponderEliminarMas gostaria de te dizer e ao nosso amigo Paulo Moura o seguinte:
Vivi com a São 26 anos de interior de Portugal. Pela farmácia do Salgueiro que fundámos de raiz, foram quase três décadas de uma doação total ao povo daquelas zonas. Quando o cliente é também amigo e carente de um conselho e de um estender de mão em tempos de aflição e amarguras. Talvez por isso hoje me emocionei com o nascimento do Martim no Padrão, o que não acontecia há mais de duas décadas na aldeia. Conheci de lá gente que já partiu. E "honrei" a aldeia do Padrão e as suas gentes com pelo menos dois textos que estão no EG : são eles " A noite pode esperar" e " Maria Matilde".
Ao Rancho do Juncal também demos algo de nós. Até em palco, apresentando nos mais variados locais do país o grupo e o historial das suas modas. Já para não falar em tempo de "vacas gordas", os 300 contos que o Presidente da Câmara de Castelo Branco me deu para o grupo.
Pela mão do Paulo Moura, tive uma página no "Jornal do Fundão que se intitulava "As Beiras". Sinto-me honrado de durante dois anos ter escrito no melhor jornal regional do país. Como me sinto honrado do dia em que Pilar del Rio, viúva de José Saramago, me ter escrito uma amável carta cujo teor reservo para mim, a propósito de um texto que escrevi em Memória do nosso Nobel da Literatura.
Cumpri e cumprimos uma missão. Talvez por isso deixámos saudades, porque as lágrimas dos nossos antigos clientes não mentem. Eles não nos esqueceram e é sempre com emoção aquele abraço de quem percebeu que nunca foi a visão mercantilista da venda de medicamentos que nos moveu. Preferimos as pessoas.
Mas agora chega. Há outras vivências e este "bichinho" que me vai mordendo de alinhar as palavras, uma espécie de terapia. Continuarei a escrever enquanto o EG existir e o seu proprietário quiser. Depois arrumo a trouxa e faço o balanço do passado e da Vida.
Um abraço a ambos
Compreendi!Valeu a pena só por este comentário.
EliminarMando o email às urtigas...
Ó Rafaelito, tu és outro maricôncio, carais! O gajo, com uma barrela com urtigas, até punha o furão a escrever por ele para o JF!
EliminarPois. De qualquer forma obrigado pela disponibilidade. O meu único problema neste momento é o Paulo Moura que me quer assassinar ....
EliminarAcusa-Cristos!
EliminarO Paulo Moura ama-te, carais! Se não fosses casado, não lhe escapavas!
Carais, que "há-des" passar "por Caria acima e por Caria abaixo" e, não sei aonde o irei desencantar, mas terás uma barrela com um furão! E urtigas, carais, para saberes o que elas mordem!
ResponderEliminarA Caria vou contigo mas é às Festas da Santa Bebiana, aquela padroeira que nos protege em momentos de aflição ... olha eu com um furão nas calças gritava logo por ela !!!
EliminarMaricôncio, é o que tu és!
Eliminar"Há-des" ter muitos amigos, "há-des"...
O sino da igreja teimosamente toca às horas que o relógio marca de um Tempo que na realidade já não existe.
ResponderEliminarÉ esta a imagem que traduz tudo na desertificação paulatina do interior beirão que o Quito assertivamente resume com o talento da sua pena.
Belo texto, Quito! Parabéns!
ResponderEliminarSabe bem ler palavras articuladas e tão bem entrelaçadas que, descrevendo uma situação,incorporam um sentido e uma emoção que as transformam numa vivência, mesmo para quem não esteve lá, nunca ouviu aquele sino nem viveu aquelas horas.
O meu abraço
Agradeço a todos os que passaram por aqui. À parte a brincadeira salutar em alguns comentários, o assunto é sério. Os anos por lá passados, deram-me a sensação de um lento definhar. Um país a duas velocidades e quem teve o condão de refletir e conviver diariamente com a realidade campesina, percebe que Namora e a sua predestinada pena é atual. Por isso, a realidade eleitoral tem para mim um valor relativo. Em todos estes anos, os povos do interior de Portugal são relegados e esquecidos, apesar de alguns pólos universitários- O drama é que o interior investe e forma os jovens que depois arrumam as malas e regressam ao litoral. Das aldeias, nem é bom falar. É galopante a desertificação. As aldeias que conheço bem e são várias, vivem num Tempo sem tempo.
EliminarA todos agradeço as palavras amáveis que me dirigiram. Mas o que importa mesmo é dar a conhecer esta realidade. Morrem as gentes e morreu o rancho, Já só resiste o sino e os poucos que ficaram, idosos e esquecidos.
Bem Hajam