segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O AMIGO DE PENICHE ...






Peniche ...

Chamam-lhe “Peniche”, mas o seu nome próprio é Filipe. Um dia foi para a guerra e os camaradas de armas apelidaram-no da terra que é seu berço. Um homem discreto, que hoje é pai de duas lindas filhas. Uma delas, ontem, exibia com orgulho o colorido estandarte da companhia onde o pai serviu como combatente na Guiné.  E nós, os outros, os que com ele combateram, ali estávamos junto ao Forte de Peniche de má memória.  Por sua iniciativa, visitámos aquele Monumento, embora parcialmente, pois o Museu do Resistente apenas estará disponível ao público na sua totalidade dentro de um ano. Porém,  tivemos oportunidade de ver o chamado “parlatório” onde os presos políticos eram visitados pelos seus familiares, e que é um bastião de sofrimento a que ninguém pode ficar indiferente. Também as salas com vasta documentação merecem uma leitura atenta.

A cidade mais ocidental da Europa, terra de pescadores, tem o anátema de que “o amigo de Peniche” será alguém em quem não se pode confiar ou é indesejável. Mas eu tenho há quase cinquenta anos um amigo de Peniche em quem confio e que comigo cimentou uma amizade fabricada na guerra e em todas as privações e aflições por que passámos. Ele foi ontem o anfitrião que organizou aquele almoço de confraternização em que reuniu mais de cem antigos militares e suas famílias. Por isso demos um caloroso abraço e, se lá chegarmos, no quartel de Estremoz e precisamente a 4 de Junho de 2O21, dia em que faz cinquenta anos que dali partimos para a guerra, almoçaremos todos naquele aquartelamento. Para o ano, porém, será a cidade da Covilhã o nosso rumo.

Partimos para Peniche de véspera. Um hotel simpático com varanda com vista para o mar e a escassos metros do farol do Cabo Carvoeiro. O silêncio e a tranquilidade que se procura. O sentar nas rochas junto ao farol e ver as traineiras que passam junto a nós e se fazem a um mar pouco amistoso que as fazia balançar com a proa a afundar nas vagas que nos comprimia o coração. E uma neblina densa, que parecia uma cortina bem definida, onde as traineiras desapareciam em direção ao alto mar rumo ao desconhecido e a todos os perigos, na procura do peixe que comemos à nossa mesa, por vezes em brindes calorosos.

O almoço foi o alvoroço do costume. Um repasto vivido intensamente, porque tem por detrás um momento especial das nossas vidas de juventude. Sabemos, todos sabemos, que estes homens sacrificaram parte da sua juventude numa luta que não queriam. E agora, que tantos anos passaram, a consciência do alheamento e desrespeito a que sempre foram votados pelos sucessivos governos ao longo dos tempos. Ou até daqueles que nem sequer entendem os momentos negros de uma trincheira num fim de mundo. Mas jamais nos anularemos no nosso estatuto de homens que combateram pelo seu país, mesmo que num combate perdido contra os Ventos da História. Jamais a nação ao edificar aquele monumento aos mortos do Ultramar na zona ribeirinha de Lisboa, poderá ter a veleidade de achar que o seu reconhecimento é pleno. Assim se lavam as mãos como Pilatos e se assobia para o lado.

E tu, António Xavier da Costa, que não regressaste ao teu Algarve porque em África perdeste a vida, também estiveste em Peniche, como estarás sempre nos nossos convívios, que mais não são que o respeito que nos devemos uns aos outros numa sociedade indiferente, ingrata e egoísta, em que a futilidade de muitos é o arco triunfal de uma turba ruidosa, por vezes e muitas vezes sem valores e sem rosto.
QP                     

6 comentários:

  1. Caro Rafael
    Conforme me pediste, aqui fica o texto seguido da postagem do meu aniversário.
    Um abraço

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  2. E desta vez foi em Peniche mais um convívio dos Combatentes da Guiné. São sempre encontros para rever amizades que se fizeram em circunstâncias não muito agradáveis. Desta vez coube ao "amigo de Peniche" as honras da casa. E que por ser mesmo amigo já se prestou para o grande encontro dos 50 anos em 2021.
    E assim se vai mantendo um tradição saudável.

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  3. É verdade, Rafael. Quando voltámos ( eu até regressei mais cedo) estivemos vários anos sem nos encontrarmos. Um dia, eu, o Ventura e o Nelson ( falecido), resolvemos tentar juntar a malta. Falámos com o General Cadavez e fizemos um almoço na Mealhada para preparar o primeiro almoço da companhia pois tinhamos as moradas de todos. A adesão foi uma "loucura". Num abrir e fechar de olhos tinhamos 3OO inscrições contando com os que traziam familia. Muitos vieram de véspera e hospedaram-se no Hotel "Bragança" junto à Estação Nova. Fomos almoçar para a Liga dos Combatentes e foi inacreditável a emoção de se voltarem a ver. Mais tarde e para que o almoço anual não acabasse, mandámos fazer um grande estandarte da companhia, apelativo e colorido com o emblema da Companhia 34O6. Afinal, uma forma de responsabilizar a Comissão do almoço seguinte. Custou -nos o estandarte entre todos e há tantos anos a módica quantia de 70 contos. O estandarte corre de mão em mão e já percorreu o país do Minho ao Algarve. Neste momento, está nas mãos de quem tem a responsabilidade de fazer o próximo encontro na Covilhã . Tu, melhor que ninguém, sabes o trabalho que estas coisas dão e eu já cá tenho a realização de 3 almoços da Companhia no bornal. E a galope seguiremos enquanto pudermos, pois a Companhia é de Cavalaria.

    Abraço

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  4. Quito, é verdade que a Cavalaria nunca recua, dá é meia volta e avança?

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    1. Pois, para os profissionais do exército, nomeadamente as graduações mais altas, sempre acharam que a a Arma de Cavalaria se distinguia das outras. Nunca percebi a lógica. Mas naquele tempo havia essa demarcação, Deu-se até o caso caricato, de quando estávamos em Lisboa para partir e tinhamos uma fita verde e outra vermelha na boina, o Comandante do Batalhão mandou mudar a fita verde por amarela nas boinas ( vermelho e amarelo são as cores da Cavalaria) e foram ao Casão militar buscar as ditas fitas.Para nós, milicianos, era indiferente pois tanto bebíamos branco como tinto, mas lá nas patentes militares havia uma guerra surda entre eles. Enfim ...

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    2. Eu nem me posso queixar muito da tropa. A única medalha que ganhei na vida foi lá... de mérito escolar!

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