segunda-feira, 7 de outubro de 2019

NO PRETÉRITO DO TEMPO ...






Estou só. Aqui, neste lugar, rodeado de montanhas. De novo me deixei engolir pelas entranhas do silêncio e da solidão. Ali, naquele nada, uma pequena fita de alcatrão vai serpenteando por entre colinas. É a estrada que me conduz à aldeia aninhada no ventre de um vale sombrio. Lá longe, ali ao longe, o fio de estrada desaparece numa curva suave por entre uma guarda – de - honra de pinheiros bravos. Olho o horizonte esfumado por entre castelos de nuvens que se arrastam pachorrentas sobre as montanhas cor de cinza. São cinco da tarde e uma aragem fria sopra agora de mansinho. Sinto que estou no pretérito do Tempo e da Vida. Lá, naquele desterro, quatro muros brancos e singelos delimitam o minúsculo cemitério. Cá fora, fardados a rigor na sua casaca azul e galões dourados, vários soldados da Guarda Republicana perfilados. Vêm saudar quem partiu com um tiro de carabina. Aguardo a chegada do cortejo. Nem preciso de meditar muito sobre o que se vai passar. Tudo tem o seu tempo neste Tempo. Tudo tem um ritual nesta cerimónia simples e austera. À frente o padre, depois as mulheres e, no fim, os homens em passo lento, chapéus de aba larga colados ao peito. O silêncio é profundo e avassalador. Apenas o matraquear dos sapatos das mulheres no empedrado da calçada fere o silêncio do povoado. O negro predomina nos trajes femininos. Nas suas máscaras pálidas, avivam-se as rugas de um passado sem rosto. Os homens, cabisbaixos, olham-se de soslaio, escondendo as emoções, tolhidos num labirinto de lembranças. Quem ali vai, despedindo-se da vida, foi homem de labuta e de folias. Quando o garrafão corria de mão em mão naquela mesa corrida debaixo das latadas. E a concertina que tocava tardes e noites sem fim, com os companheiros já meio pingueiros a cantar à desgarrada nas noites mornas e de luar. Mas hoje, aqui, neste povoado singelo, escreveu-se um ponto final. Retiro-me antes da salva de tiros. A curva suave da estrada misteriosa suscita-me curiosidade. Parto sem destino, no galopar dos meus pensamentos pardos. Uma enorme descida leva-me até um vale perdido no Tempo. Ali não existe Passado. Nem Presente. Nem Memórias. Um homem de cajado na mão e cabelo ao vento, andrajoso e de longas barbas brancas em desalinho, saúda-me com uma vénia. Aceno-lhe, correndo agora à desfilada na procura desesperada do meu Tempo presente. Aquele casario longínquo, que já vejo esbatido na bruma do entardecer, é - me familiar. Sinto que cheguei ao meu porto de bonança. Entro no meu escritório, refúgio das minhas emoções, enquanto lá fora a noite cai fulminante sobre os telhados escuros e o vento corre célere pelas veredas da aldeia neste lamento de outono.
Q.P.        

7 comentários:

  1. Todos os dias, de algum modo, retrocedemos às lembranças. Alguém sempre me alerta, quando falo de algo que passou, "isso é passado", como a me repreender por, novamente, trazer à tona fatos idos. Ora, quem é que neste mundo não dá uma escapadela ao Passado? Quem, em alguma parte da Vida, não fecha os olhos somente para reviver cenas do passado?!
    Ás vezes até nos surpreende constatar, que, dependendo do que vivemos no passado, faria um bem danado fazer-se presente...no Tempo Presente.
    E são vários os exemplos, sendo um deles: um filho, já adulto, lembrando de quando era apenas um bebê....

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    1. Cara Amiga

      Este não é um passado remoto. Todos os anos, por várias vezes, percorro estradas que me levam a um passado. Portugal, uma pequena nação com pouco mais de 2OO quilómetros de largura, é um país assimétrico. Do lado marítimo a vida. Do lado raiano a desertificação. Ficaram os idosos e os resistentes que rejeitam deixar as suas raízes. São planicies desertas, vales misteriosos e gente vestida de negro com baldes à cabeça a caminho das hortas da sobrevivência. Lá, vive-se em silêncio e do silêncio. Um dia, assisti àquela cerimónia fúnebre e passei por um vale profundo que me tolheu os sentidos e me fez rapidamente voltar ao meu presente. E os factos relatados não são um passado sem memória. São o presente de quem vive longe dos grandes centros e são felizes à sua maneira e sem outras expectativas que não seja o continuar a labuta campesina dos seus antepassados. E só quem conheceu esta realidade no terreno, percebe a saga deste povo heróico ...

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  2. Também, enquanto lia, acompanhei passo a passo o cortejo fúnebre que levou este cidadão até à sua última morada,chegando ao pormenor de ir vendo as máscaras pálidas, as rugas e ouvindo na minha cabeça o matraquear dos sapatos das mulheres!
    É impossivel percorrer todo o texto sem sentir palavra a palavra, frase a frase, todo o sentimento com que foi feita a descrição de um final de existência terrestre, mas que sendo numa aldeia rodeada de montanhas, sem a azáfama de uma cidade, permite uma paz, um silêncio, propício a quem tem talento para escrever, para nos envolver numa leitura que nos faz partilhar as angústias que ele próprio sente e que tão bem passa a à escrita!
    Um abraço

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    1. Obrigado, Rafael. É sempre reconfortante saber quem nos lê. É um estímulo. Gostei das tuas considerações e dizes tu que vais tendo alguma dificuldade em comentar. Estavas claramente inspirado nas linhas que escreveste, acompanhando-me naquele momento tão desconfortável.

      Um abraço

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  3. Uma viagem entre o tempo passado e o tempo presente.
    Marcado pelo silêncio a que o Quito se impôs como forçosamente achou indispensável.
    Não quis ouvir os disparos das carabina.
    Não ouviu sequer a voz do homem andrajoso que o cumprimentou com um aceno.
    Quase lhe ficou nos ouvidos o inevitável matraquear dos sapatos dos acompanhantes sorumbaticos do funeral, mas até esse ruído se apressou a afastar.
    E no fim apressou-se a voltar ao tempo presente no recôndito do seu escritório onde acabou a jornada.
    Ainda assim mantendo o silêncio.

    Porque o silêncio é a voz que nos grita melhor que as palavras.

    Esta crónica leva-nos ao ambiente rural que o Quito tão bem conheceu.
    Fico com a sensação de já ter lido antes esta escrita inconfundível que só o talento produz.

    Mas não estou certo de já a ter lido.
    Um abraço Quito.

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  4. Sim Felício, deves ter lido. Este texto já tem uns anos. Porém, reli e produzi-lhe algumas pequenas alterações. Carreguei-lhe mais nas tintas negras neste ou naquele pormenor sem lhe alterar a matriz. Penso que ficou mais fiel ao que se passou e interiorizei, naquele momento particularmente triste e devastador, com aquela particularidade dos soldadinhos que mais pareciam de chumbo de armas viradas ao céu num troar que já só ouvi ao longe na descoberta de um vale rude e profundo.

    Um abraço

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  5. Desconfiava que já tinha lido.
    Um pormenor serviu me de reactivação da memória.
    A fita negra de alcatrão serpenteando.
    O resto veio por acréscimo.
    O nosso cérebro é de facto uma máquina.
    Um pormenor é como a ponta do fio de um novelo.
    Basta puxar a ponta...

    Um abraco

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