Quantas vezes julgamos que umas palavras amigas e outras tantas palavras sensatas são suficientes para curar uma alma ou um coração aflito? Quantos de nós não estimam a palavra certa, na altura certa, para nos traçar novos rumos e nos mostrar outras cores na paleta da vida?
Decerto, serão muitas as vezes e serão muitas as pessoas que se reveem no dito, mas a verdade é que são também muitos os casos em que uma ação certeira é muito mais importante do que todas as palavras do mundo.
No Monte, bem nos limites da freguesia, deu-se um episódio em que o gesto foi tudo e as palavras não serviram de nada. Eram casos desavindos, de vizinhanças enciumadas por causa das águas e dos animais no pasto. Mais do que uma vez, o Maltês envolvia-se com o Ti Francisco por dá cá aquela palha e tudo porque os ódios eram antigos e não havia convivência possível entre os dois vizinhos.
O Ti Francisco era um solteirão convicto, que vivia em casa do irmão, na quinta das Secárias, pagando com o seu trabalho intermitente a hospedagem que este lhe dava. Tinha um jeito especial para junguir (não se conhecia jungir, a palavra correta) as vacas e aparelhar a égua sempre que era preciso ir a Lamego. Tinha um ar bem-disposto, um pouco namoradeiro, mas sempre cordial para todos. Só com o vizinho é que cultivava um ódio de estimação.
Houve um dia em que a discussão foi tão azeda que envolveu ofensas à memória de ambas as famílias e o Maltês cantou uma série de salmos insultuosos que ofenderam fundo a consciência do seu rival. Este, despeitado pela afronta, foi para casa e começou a preparar a dose da vingança que lavaria a honra ofendida. Eram tempos em que o sangue lavava e mandar os maldizentes para debaixo da terra era coisa de homem.
Com método, pegou espingarda de carregar pela boca, uma carabina ainda da guerra peninsular, usada na caça, reforçou a onça de pólvora negra e, desconfiando da eficácia do chumbo miúdo neste tipo de necessidades, pegou num monte de pregos ferrugentos e pôs-se a cortar-lhes as cabeças com a talhadeira em cima da safra. Com elas preparou a dose para vazar o Maltês.
O irmão, avisado, disse da sua discordância e avisou que seria a desgraça de todos. O Maltês, mais dia menos dia, teria a sua paga e a vida se encarregaria de o castigar. Mas nada feito: as palavras sensatas e corretas não o demoviam e queria à viva força atirar-se ao caminho da casa da quinta do Maltês, para o esperar a meio da manhã, quando regressasse para o almoço. Perante tal teimosia, o irmão recomendou, então, que almoçassem eles também antes, e só depois se veria o que fazer
.
Nada convencido nem vencido, o Ti Francisco achou que não seria pelo facto de adiar por algumas horas a sua vingança que haveria diferença, até porque quanto mais fria, mais bem servida ela seria. E foram almoçar.
Só que a cumplicidade do irmão e da cunhada funcionava muito bem nestes momentos e não foi necessário mais nada do que um ligeiro olhar e aceno de cabeça para ela pegar na arma e a esconder no forro da casa, carregada como estava.
Sem meios, o Francisco teve de desistir da sua empresa e o mundo escreveu os destinos. Por uma outra razão, o Maltês envenenou-se dois dias depois com 605 forte, vindo a morrer de forma horrível ao fim do quarto dia de agonia e a arma com as cabeças de pregos nunca foi disparada, por medo de rebentar
. Acho que ainda anda lá por casa da nossa família, a enfeitar a parede de um dos corredores
Antonino Silva
Antonino Silva
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