quinta-feira, 3 de outubro de 2019

QUOTIDIANO DO CAFÉ DO SR SILVA


QUOTIDIANO DO CAFÉ DO SR. SILVA

Ao fundo, o balcão envidraçado pejado de bolos de arroz, jesuítas, duchaises, pasteis de nata e de Tentúgal, brioches, queques…
Em cima dele num dos cantos, um pequeno barril de madeira que escondia a serpentina por onde corria a cerveja e que o Sr Silva, dono do Café, de manhã e à tarde aconchegava com
bocados poliédricos que ia partindo com um martelo de uma enorme barra de gelo.
Na parede, destacado, um diploma de Tirador de Cerveja em nome do dono do Café.
Numa mesa, ao canto, o Afonso, o Silva, hóspede, que vivia num quarto alugado no primeiro andar, o Elói e o Munhoz, jogavam os dados.
Ao lado, noutra mesa, o prof Ilharco, de lunetas redondas encavalitadas na ponta do nariz, impacientava-se e intimava o Sr Silva a ultimar o trabalho de meter o gelo no barril para se vir sentar para uma partida de damas.
No meio do ruído dos dados a rebolarem estrepitosamente no tampo da mesa ao lado, o Afonso ia apontando num papel, os tentos de cada parceiro, sempre sob o olhar desconfiado do Munhoz que não se cansava de dizer que ele queria ganhar na secretaria.
O Sr Silva, de cabelo preto arrepiado da frente para trás, entretanto já sentado em frente ao prof. Ilharco lá ia movimentando as pedras, carregando fortemente naquela que acabara de deslocar.

Fitava o Ilharco e setenciava com ar melifluo:
- Voi lhe colocar aqui um prego!
- Ah! Você disse um prego, articulava o Ilharco pensativo, fazendo uma careta...
Na mesa ao lado, o Elói, pausadamente, proclamava:
- Poker de ases!
E o Sr Silva, sem despregar os olhos do tabuleiro das damas:
- Ele disse poker de ases...
E o Ilharco:
- Ah, você disse  que ele disse poker de ases. Mas se não se põe a pau, como-lhe três e faço dama.
- E eu como-lhe a dama! Aqui não há pão para malucos...
- Ah. Você disse malucos...
- E o Munhoz na mesa do canto, ao mesmo tempo que chocalhava os dados dentro do copo de cabedal, antes de os lançar:
- Ah, ele disse que lhe comia a dama! Olha, fullen de reis por valetes. De mão! Aponta aí, Afonso!

Entra o Feliciano, de livros debaixo do braço:
- Sr Silva, queria um café e um bolo.
- Tire-o. Sirva-se! O café são oito tostões e o bolo doze, respondia-lhe o Sr Silva sem tirar os olhos do jogo das damas e estendendo a mão para receber o dinheiro.
- Vou-lhe fazer o pé de galo, dizia o Ilharco quando ficou com três damas contra uma.
E o Munhoz:
- Ele disse que lhe vai fazer o pé de galo!
Entre dentes, o Silva resmungava:
- Para isso tem de me tirar do rego.
- Ah, você não sai do rego...assim também eu, dizia o Ilharco, contrariado.
- Está de esquina! Não vale!, dizia o Afonso ao Elói que reclamava uma sequência máxima.
- Pois, é como digo. O gajo ganha sempre na secretaria, berrava o Munhoz com um murro na mesa que fez o dado esquinado assentar numa das faces.
- De esquina? Qual esquina?, respondia-lhe o Elói  apontando para os dados, agora sem nenhum de esquina, depois do murro do Munhoz...

Era assim o dia a dia no Café do Sr. Silva...







5 comentários:

  1. O emblemático Café do Silva, era lugar de cenas pitorescas e de um quotidiano feliz. O Bairro que um dia se chamou Marechal Carmona, era um local diferente. Ali reinava o associativismo, o companheirismo e a amizade. O Café do Silva e a sua variada clientela, traziam ao quotidiano um sabor especial tão bem retratado neste belo texto do Rui Felício. Falar deste Café é para mim recordar também o nosso saudoso Rui Piçarra e dos "Jesuitas" que ele comia ao pequeno - almoço. Hoje, o bairro, de diferente passou a indiferente. Mudaram os tempos e vai mudando a geração. A competitividade tomou conta do reino. Já não se comem "damas" no café do Silva ou se jogam dados ou cartas e se dão murros na mesa. Nem o freguês tem a ousadia de ir à montra dos bolos e escolher o que quer enquanto o Silva tenta com artes mágicas comer a dama do antagonista num golpe de asa. Outros tempos e outras recordações. E este texto bem engendrado é um documento ...

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  2. O que nos faz a velhice.
    Vê lá tu que me vieram as lágrimas aos olhos com o que disseste.
    Especialmente quando recordaste o meu saudoso amigo Rui Piçarra e daquele dia em que ele depois de assistir a uma intelectual conversa sobre o papel dos jesuitas no ensino e a sua expulsao pelo Marques de Pombal, em acalorada discussão entre alguns circunstantes sentenciou :
    - Oh Sr. Silva traga-me um galão e um jesuíta.
    Sim porque eu como um gajo deases todos os dias...

    Tempos que não voltam....

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  3. Eu frequentava mais o café Abrigo do Sr Graciano pai, onde o Graciano filho e irmão do Elói, também de dedicava a jogar as damas...
    Claro que também era presença no Café Caravela do Sr Silva, mas os fregueses eram todos mais da minha geração, não convivendo por isso com esta malta mais nova...
    Mas assisti também a algumas situações engraçadas especialmente nos jogos de damas entre o Sr Silva e um senhor que era crak neste jogo e que normalmente ganhava sempre, fosse qual fosse o adversário e que se bem me lembro se chamava Silva e era cobrador de quotas do União de Coimbra. Alguém de vós se lembra dele?

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  4. O Nito já identificou o Sr Silva das damas.
    Enviou uma foto do Sr enquanto jogador de futebol internacional tendo no verso escrito que dedicava essa foto ao SR ALBERTO GOMES-pai do Nito.

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