quinta-feira, 19 de março de 2020

QUATRO CONTOS E UMA VACA ...





Os tempos cinzentos passados em África são um rio de memórias. Alguns querem à força esquecer aquele passado. Outros porém, como é o meu caso, vou revisitando momentos e chego à conclusão que a minha experiência com africanos naquela zona perdida junto ao Boé foi enriquecedora em certos aspetos. Afinal, outras gentes e outras culturas. Hoje lembrei-me do Vitor Baldé que era de etnia fula. Caiu de paraquedas no meu grupo de combate. Cedo me apercebi que era manhoso na sua relação comigo e com os seus camaradas de armas todos de etnia fula. O Baldé se pudesse escusar-se a qualquer trabalho fazia-o sem pudor, empurrando para cima de outros o que lhe estava distribuído. Um dia veio ter comigo com um ar sonso, pedindo-me autorização para ir ao Gabu buscar a noiva. Disse-lhe que naquele dia a coluna militar que se deslocava a Nova Lamego buscar alimentos era da responsabilidade de outro grupo de combate pelo que tinha que aguardar a nossa vez de viajar. Ele,  choroso e a torcer as mãos, suplicava-me para ir e eu acabei por ceder, com uma séria desconfiança de que ele me estava a enganar naquele negócio. Sim, porque o casamento era um negócio entre o noivo e o pai da noiva e que se resumia nisto: toma lá a rapariga e dá cá o dinheiro e um qualquer bem acordado entre as partes. Então o Baldé partiu, tendo eu previamente pedido autorização ao comandante da coluna militar para ele seguir com o grupo, o que me irritou ainda mais por pressentir estar a ser ludibriado. Já tarde, a coluna regressou à base carregada de mantimentos. Eu, deitado na minha cama no abrigo a ler um “Diário de Coimbra” que me tinha chegado da Metrópole pelo correio, ouvi o ronco dos motores. Fiquei de alerta e já de faca afiada para pedir justificações ao meu soldado que era um autêntico primor em manha. De repente, ele desce a escada do meu abrigo e apresenta-se. Fico a olhar para ele e a pergunta era sacramental: então e a noiva? Está  lá fora – respondeu - me. Então vai busca – la que eu quero vê – la, disse-lhe ainda desconfiado. Mas enganei-me. A rapariga entrou a medo e com um sorriso humilde. Fiquei a olhar para os dois, contristado por ver aquele negócio que envolvia a venda daquela jovem pelo pai. Sem que nada eu lhe tivesse perguntado, o Baldé adiantou-me que a noiva lhe tinha custado quatro contos e uma vaca. Foram embora em paz, embora me parecesse que ela não estava infeliz naquela sua nova realidade de bajuda casada.
Outras gentes. Outros costumes. Outras culturas. Outras civilizações.
Q.P.     

2 comentários:

  1. Só para mais tarde se verá que se foi bom negócio.Pode devolver a mercadoria? Ou tem que aguentar...

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  2. Bom Sábado Que Belo texto ..
    Que Belo comentário nesta altura todas as garantias já acabaram:
    Bjs

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