1950 Novembro
O Borda d'Água, sim o Borda d'Água, ainda não havia televisão, ou rádio, nem sequer havia electricidade lá na aldeia, mas esse boletim anunciava fortes tempestades de vento, granizo e trovoada.
O ti Ferreira já fora ver as previsões, mas tinha uma encomenda para entrega e não podia falhar pois dera a sua palavra de honra ao comprador.
Depois do mata-bicho foi ter com a Felisbela do ti Júlio e com o Lau do ti Diamantino, com 10 e 11anos, respectivamente, e disse-lhes onde estavam os carregos para levarem. Ele iria à frente, se avistasse a guarda ou os carabineiros, voltaria atrás para os avisar. Tinham de ir pelo moinho do prado castelhano e descerem dali para Navas Frias. Era bem mais longe mas era mais fácil.
_ Levem a samarra e o xale de lã, não se esqueçam!...- pediu-lhes. - Cuidado com as escorregadelas! Se houver muitos trovões não se quedem debaixo dos carvalhos!
_ Sim, senhor!
_ Se virem a guarda escondam o carrego e continuem a andar com se fossem buscar as vacas ao lameiro, está bem?
_ Sim, senhor.
O ti Ferreira partiu e os garotos meteram um codorno de pão às bocas e foram em busca dos sacos do café para abalarem.
Ainda estavam a avaliar o peso da carga e já se ouvia o primeiro estrondo da tempestade que se avizinhava. A Felisbela tremia de medo, mas a mãe estava com as maleitas e não tinham dinheiro para os remédios. Ganhou alento, pôs a saca de sarapilheira às costas, cobriu-a com o xale. O Lau imitou-a e vestiu a velha samarra do avô, sobre o talego do contrabando, pôs a sua boina negra, puxou melhor os calcanhares das alpargatas e saíram. À porta, psignaram-se e, lado a lado, lá foram.
Os relâmpagos faíscavam o céu e o tremendo estrondo não durava muitos segundos a estremecer toda a terra.
As duas crianças caminhavam contra a força do vento, do terror e do peso das cargas e das roupas encharcadas.
No prado Castelhano, o Lau deu uma escorregadela pela laje abaixo e foi estatelar-se lá no fundo onde o regato se transformara em Ribeiro com velocidade louca. A Felisbela aventou-lhe um Ramalho. Mas nem ele se conseguia agarrar nem ela tinha força para o puxar. Deram gritos alucinantes de desespero e terror. E sem esperança já se entregavam à morte quando o tio António chegou com o seu cavalo e cordas.
No moinho havia um lumezito com as brasas mortiças e um tição quase apagado. O tio António trouxe mais umas pinhas que depressa se puseram a crepitar com as chamas a bailar ao ritmo da mó.
Os catraios continuavam a tremer...
Ao canto do lume uma velha cafeteira azul de esmalte começou a fumegar.
O moleiro pegou nas duas malgas que lá tinha e foi lavá-las com a água da chuva. Pegou num punhado de erva-de-São Roberto e atirou-o para a cafeteira. Procurou um poquenino de açúcar no fundo do açucareiro, mas não havia. Lembrou-se que tinha um frasco de geleia de marmelo e foi buscá-lo.
Os garotos não paravam de tremer e de espirrar, mas ali não havia roupa seca para vestirem. O tio António lembrou-se dos alforges do cavalo e da manta de trapos com que nos dias muito frios tapava a porta pelo lado de dentro....
Georgina Ferro
Sem comentários:
Enviar um comentário