segunda-feira, 29 de março de 2021

 


VOLTAR …

Que linda está a cidade! Banhada de um sol primaveril neste inicio de tarde. Paro o carro junto a casa, depois de quilómetros de uma viagem em que andei por entre “quintais”, porque o itinerário complementar oito se encontra interrompido a partir de certo troço. Agora que cheguei, nem  tempo tenho de recolher as malas da bagageira. Alguém num português arrevesado chama por “Eurico”. Olho e no passeio junto a uma pizzaria, vejo um homem alto, com um chapéu de aba larga na cabeça, a sua imagem de marca – é o Evis Andriguetti. Vamos ao encontro um do outro e ultrapassámos as barreiras sanitárias e o abraço veio num impulso. Também a minha companheira de viagem que o saúda com amizade e estima – uma estima que é recíproca. Depois foi uma avalancha de palavras. Foram uns longos catorze meses de interregno e o Evis precisava de um ombro amigo. Fala de todos os que, como ele, vivem da restauração nestas horas de aflição. E relata com  orgulho que mantém  os seus empregados e que estão todos no mesmo barco. Mal para um, mal para todos é o lema.

Sempre gostei deste italiano. É um homem culto, que ama a sua Itália. Franco na palavra e sem a viscosa hipocrisia das sociedades de hoje. Quantas e quantas vezes se sentava na nossa mesa ao jantar no seu restaurante e nos falava da sua empresa e das suas preocupações. É um homem educado e cordato, o Evis. Transparente na sua forma de estar na vida. É um italiano de afetos, que chora quando se lembra do seu país que uma tem uma arena em Verona, gôndolas em Veneza e uma surpreendente Torre de Piza. E eu gosto das pessoas transparentes e dos homens que têm a capacidade de chorar.

Logo ali ficou acordado que iria lá buscar o almoço e o jantar. E os dias que passássemos na cidade albicastrense, ali procuraríamos o repasto. De uma forma jocosa, comprometi-me a experimentar todo as “pastas” do menu com uma “Pomodoro e bazílico” como pontapé de saída. E uma pizza “Saporita” para a minha companheira de viagem.

Já a noite vai fechada e entro para um pátio como Evis me recomendou. E, numa porta envidraçada, bati . É ali que os clientes vão agora levantar as refeições que levam para casa. E um grande cartaz escrito em letra de imprensa diz num tom quase ditatorial – aguarde aqui. Mas eu não precisei de aguardar. A Zeza, companheira do Evis, logo me reconhece e mesmo por detrás da máscara lhe percebo um sorriso nos olhos e diz – me para entrar. Sinto que estou em casa. Falamos depressa, interrompendo-nos um ao outro numa catadupa de palavras. Das palavras que precisavam de ser ditas. O Marco, fardado de branco e com uma enorme pá, vai metendo as pizzas no forno a lenha e remata:

- Senhor Pereira, anteontem cá em casa lembrámo-nos da sua cidade. O Hugo por uma qualquer razão falou da Académica e o nosso pensamento foi logo para si …

Senti-me confortado. Mais de um ano depois, ainda sou lembrado naquela casa. Desconforto sim, foi ver a sala de luzes apagadas e as cadeiras e as mesas arrumadas a um canto. Olho contristado e em palavras embrulhadas porque não me saem direito, digo à Zeza:

- Zeza, fui muito feliz nesta sala …

E ela, com um brilhozinho nos olhos como na canção de Sérgio Godinho, responde-me com aquela sua força de uma lutadora da vida:

- E um dia voltará a ser …

Despedi-me daqueles amigos de uma vida e, com o saco da comida na mão parti, embrulhado nas sombras da noite.

Kito Pereira              

4 comentários:

  1. Imagino o quanto te custou o convívio com as máscaras e sem abraços e ainda mais, a despedida.
    Tenho a certeza que os amigos que lá deixaram jamais vos esquecerão.

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  2. "...E eu gosto das pessoas transparentes e dos homens que têm a capacidade de chorar." Bem-vindo ao clube, Kito. Como tu, também gosto de gente assim.

    Que bom o Sr. Evis (italiano) e sua Zeza (é portuguesa?) terem ombros amigos para chorarem.

    Beijos, Kito, para a tua São, também, claro...e com todo respeito.

    Chama a Mamãe

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    1. Minha boa amiga, O Evis é italiano e natural de Verona. A Zeza é portuguesa da Beira Baixa. O Evis inicialmente veio trabalhar para a zona de Castelo Branco, para uma fábrica de sapatos de uma italiana. Depois a fábrica faliu e o Evis teve que lutar pela sobrevivência. Conheceu a Zeza com que casou e tiveram duas filhas gémeas,
      que hoje em Castelo Branco estão no último ano do curso de violino, pois querem fazer da música opção de vida. Gostamos muito deles e o contrário também é verdade. A nossa relação é tão familiar que eu por vezes vou para a cozinha do restaurante ver a Zeza cozinhar. A nossa relação era e é de amigo e não apenas de clientes. O Evis é um cavalheiro, muito educado e cortes para toda a gente. Para além de culto e grande sabedor da história de itália, o seu país que tanto ama e de que fala sempre com muita saudade. Agora com a pandemia não pode viajar e anda triste.

      Grande Abraço

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  3. Mais uma visita à cidade que foi durante anos teu porto de abrigo e à qual ainda estás ligado.
    Claro que encontraste amigos com quem reviveste amizades de então!
    Acompanhei com interesse tudo o que recordas no texto que se lê com agrado.
    Abraço!
    nes

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