CONTOS da
OS GUARDAS
O menino sentou-se numa pedra, no meio do grande pátio.
Ficou pensativo, a olhar fixamente para a sentinela armada, mesmo em frente, no cimo do alto muro. Dentro dele, recomeçava o remexer de todas as vísceras, a cabeça a estalar-lhe. Levantou-se e tentou pegar na pedra em que estivera sentado. Ah, como ele, gostaria de lhe acertar!
Os outros meninos saíram, a correr, da porta grande do meio.
Um deles juntou-se-lhe. De mãos nos bolsos, os olhos azuis fitos bem nos do menino moreno de farta cabeleira.
- A senhora ficou zangada. Pedro. Ela disse que tu eras um menino rebelde!
Pedro não tirava a atenção do muro. Estava de pé, as pernas unidas, como que em posição de “sentido”.
- João, não gostavas de sair daqui?
- Sair daqui?
- Sim, ir para casa. P´rá tua mãe. P´ró teu pai…
- Mas eu saio, Pedro! Logo, quando as aulas acabarem, vou
P´rá minha mãe, p´ró meu pai. P´rá minha casa…
O menino moreno ficou a olhá-lo, admirado.
- “Eles”…deixam-te ir?
- Eles?
- Sim os guardas…
- Que guardas?
- Aqueles. Ali. No muro. Com as armas na mão…
- Não vejo…
- Não vês?
- Não. Não vejo armas nenhumas…
- Nem os guardas?
- Não há guardas na escola, Pedro…
Pedro afastou os olhos do companheiro e virou-os de novo, para o homem armado a andar de um lado para o outro, no cimo do muro. O João seria cego? Não, não era. Porque não via, então, aquele homem?
- Mas ele está lá!
- Não está, Pedro. Eu não vejo.
Virou-lhe as costas, desiludido. Pedro ficou a vê-lo afastar-se e juntar-se ao grupo de meninos que jogavam com uma bola de folhas de jornal. Porque é que eles não viam? Correu ao seu encontro. A bola veio parar-lhe aos pés e ele estacou. Não lhe tocou, mas de olhar baixo, a fitá-la. Nenhum dos meninos se mexeu. Foi como se uma máquina de filmar parasse de repente, numa cena.
- Vai lá buscá-la, pá! O miúdo é maluco. Olha que ele pode estragá-la!
O filme voltou a correr. E, com ele, os meninos precipitara-se para o esférico, indiferentes aos encontrões que o Pedro sofria. O centro do jogo foi desviado para outro ponto do pátio e o menino moreno ficou, outra vez, isolado. O João podia sair. Tinha uma mãe, um pai, uma casa., sem ser aquela prisão. Ele lembrava-se que tivera uma mãe, um pai…Onde? Quando? Agora, não podia sair dali. Ficava sozinho num quarto. A irmã Helena levava-lhe a comida, obrigava-o a fazer os deveres da escola. E não podia sair. Ele pensava que os outros meninos também ficavam ali, noutros quartos iguais ao dele.
- Pedro!
Tinha-se chegado ao portão. Estava aberto. E…não tinha guarda. O manto negro da irmã de caridade esvoaçava na sua direcção. Deu um passo em frente. Lá fora, as pessoas passavam, sem lhe dar importância a contar as pedras da calçada. Saíra. Afinal não era difícil. Onde estavam os guardas? Instintivamente, olhou para o cimo do grande muro. Era estreito. Impossível uma pessoa caminhar ali. Para onde tinham ido os guardas? Aquele era o mesmo muro?
Uma mão agarrou-lhe o braço.
- Aonde ias, Pedro?
- P´rá minha mãe…
A irmã Helena puxou-o, para o interior do pátio.
-Agora, vamos ter com o senhor doutor, está bem? Depois levo-te a passear…
Não gostava nada do doutor. Ele fazia perguntas, muitas perguntas. E ele não sabia responder. Não se lembrava. Já sabia o que se ia passar: deitá-lo numa cama dura, sem lençóis e contava-lhe aquela história esquisita dos senhores que tinham tido um desastre de automóvel, mais o filho. Ele tinha a ideia de saber aquela história havia muito tempo. Era como se tivesse visto o filme. Mas não lhe interessava nada daquilo. Com o que ele estava contente, agora, era saber que não havia guardas. O João tinha razão. Podia sair. Com a irmã Helena, porque era, ainda pequeno. Podia ser que encontrasse a irmã. E o pai.
Onde estariam eles?
15 de Abril de 1971