Da música clássica aos tangos de Gardel ...
Era um romântico e gostava do
Choupal. Ali viveu e com os livros da escola de sacola ao ombro, percorria a
distância entre o fundo da Mata e a cidade a pé, no intuito de estudar e de se
valorizar. Porém, o seu sonho de menino era conhecer mundo. Um dia, já
adolescente, partiu para Lisboa em busca de uma outra realidade.
Na bagagem,
como recordação, levou uma grafonola de manivela que lhe foi oferecida por um
familiar nortenho, os discos de música clássica
e os tangos de Gardel que ouvia nas tardes Choupalinas, de janelas abertas de
par em par em dias de primavera. Também no inverno, quando a escuridão cobria
com o seu manto negro a casa paterna e a luz pálida do candeeiro a petróleo
iluminava as paredes brancas do casarão, naquele isolamento inquietante.
Uma relíquia que guardou
ciosamente até ao seu último dia de existência, na sua casa lisboeta. A música
como sua fiel companheira de vida. A Vida – essa- deu -lhe a mão e a
possibilidade que tanto ambicionava de viajar. Estudioso que sempre foi, com
esforço e mérito, chegou a oficial superior da Marinha Mercante. A sua
determinação tinha dado os seus frutos.
Foi pois, homem de muitos mares. Naquela
época, fazia viagens balançando a existência em paquetes entre Lisboa e as
antigas colónias portuguesas. Também em cruzeiros europeus e viagens a locais
mais remotos do Oriente. De Timor, ficou-lhe para sempre a saudade do povo e as
lembranças.
O charme que lhe era natural,
presenteava-o por vezes com inopinadas surpresas. As belas sereias que, em
horas desencontradas da noite, lhe batiam à porta do camarote do navio, na
procura de um romance fugaz no meio do oceano, requerendo umas horas de
confraternização que nunca negou por dever de ofício e cortesia – dizia-me a
sorrir ...
Homem de muitos mares ...
Apesar do seu semblante muitas
vezes fechado, nunca deixava por mãos alheais uma nota de humor. Mesmo em
conjunto com outros oficiais da Marinha Mercante. Uma vez, já no longínquo ano
de 1966, foi com os companheiros ao cinema em Londres e começou a correr o
boato que aquele grupo era de jogadores da equipa nacional de futebol, que
disputavam o Campeonato do Mundo da modalidade, sendo de pronto rodeados de
muita gente. A roupa civil escondia-lhes a verdadeira identidade de marinheiros
e para não defraudar o entusiasmo do público cinéfilo, não o desmentiram.
A
ele, confundiram-no com o Germano e, encostado ao parapeito de uma janela, lá
foi dando autógrafos como se do ídolo do pontapé na bola se tratasse. Ele, que
nunca mostrou qualquer interesse ou simpatia pelo desporto – rei.
Também em Londres, de uma outra
vez, sentado em Piccadilly Circus, abeirou-se dele um jovem alto, de cabelo
comprido e desgrenhado, bigode louro e cigarro na boca que lhe disse:
- Tenho fome e não tenho dinheiro
…
- Mas porque não trabalhas ? …
A resposta veio pronta e sincera:
- Não trabalho porque não gosto e
me chateia…
Levou então dinheiro para uma sandes, porque quem diz a
verdade não merece castigo - disse-me um dia em conversa, enquanto me falava das
suas memórias de uma vida plena, cheia de episódios por vezes burlescos e
outros dramáticos.
O homem de muitos mares, partiu
para a outra Vida. Voltou a Coimbra e está a escassos quilómetros do Choupal e
da casa florestal que foi dele e mais
tarde também minha.
Regressou para junto dos pais que,
em época de muitos tormentos e canseiras, contribuíram decisivamente para que se
realizasse como homem íntegro que foi e cidadão universal de tanto navegar
pelos pontos cardeais.
Agora, volvidas tantas décadas, o
cântaro regressou para junto da fonte que lhe proporcionou o atingir dos sonhos.
Os sonhos do menino que olhava o Mondego que corria a seus pés, na esperança de
abraçar o mundo …
Quito Pereira
Em Memória de Ernesto Messias Pereira ...
ResponderEliminarDeduzo ter sido o teu avô, mas isso é irrelevante para a beleza do texto.
ResponderEliminarUma bela homenagem ao marinheiro, navegador, sedutor e amante da boa música.
Parabéns, Quito e bem vindo.
Para reenicio da tua actividade bloguista depois de andares por aí a tratar da saúde, boa postagem com umas memórias passadas no "teu Choupal"Mas este Messias também é Pereira..Ou não quer dizer nada. Se quer dizer alguma coisa do ramo pereira, no que diz a música não te passou nada!!!!Só se foi a grafonola...
ResponderEliminarGostei muito de a ler e ainda mais que já estás aqui para as "curvas".
Agora tens que vir apanhar sol...
Quando for avisa!
O irmao mais novo do meu sogro ,que recordamos com muita saudade!
EliminarBem me parecia!
EliminarJá tardavas, Quito. Abre aço!
ResponderEliminarBoa escrita.
ResponderEliminarUm Abraço.
Gaita, Quito! Reapareces em grande forma!!!
ResponderEliminarAbraço.
Não teve nada a ver com a gaita!Roda,Roda!
ResponderEliminarE eis que regressa o Homem de muitas escritas!
ResponderEliminarBelas, reflexivas e plenas de beleza literária.
Um abraço especial para o teu regresso ao trabalho, sim, porque tu gostas de trabalhar...
Já cá fazias falta mas antes de tudo, contente por te ver por estes lados. Este blogue acaba de subir de cota.
ResponderEliminarMais um belíssimo texto aonde foste mostrando por dentro a vida do teu tio que se o víssemos nem fazíamos ideia das suas diferentes aventuras e vivências.
Se aparecer já é um bom sinal, votos que o restabelicimento total seja rápido.
O Quito e o seu enraizamento a tudo quanto lhe deu o ser.
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