Por picadas perigosas ...
Era
oficial de carreira mas de carreira tinha pouco. Nada dado à rigidez militar, o
homem era avesso a formaturas e outros deveres inerentes. Apenas mantinha um
padrão de comportamento de acordo com as hierarquias, quando chamado a funções
que a profissão lhe exigia. Na messe de oficias aparecia apenas o tempo
suficiente para forrar o estômago com esparguete e bocados de carne misturados,
prosaicamente chamados em linguagem de guerra por “estilhaços”.
Naquele
fim do mundo do leste da Guiné, naquela Companhia de Comando e Serviço, não era
difícil encontrar tão bizarra criatura. As suas gargalhadas ecoavam pela
caserna dos soldados, onde, de garrafa de cerveja na mão e um bando de taratas
à sua volta, ia contando e ouvindo umas anedotas que não eram propriamente de
jardim infantil. Esse comportamento inusitado, valeu-lhe a simpatia de muitos e
o ódio de estimação de alguns.
Foi
rotulado de bêbado e a mensagem não era inocente. Nas esferas militares mais
conservadoras, as suas práticas eram vistas como uma ofensa à dignidade
militar. Porém, a verdade é que nunca ninguém o viu embriagado.
Mas
havia já um pensamento maquiavélico para as chefias se livrarem de tão incómoda
criatura. Até que um plano foi detalhadamente pensado ao pormenor: mandar o
capitão para o mato, onde construiria um aquartelamento.
Chamado
ao Comando para receber a “boa nova”, o oficial recebeu a ordem sem pestanejar
e aparente indiferença.
No
dia aprazado, com várias camionetas, outras viaturas do exército e uma
companhia de soldados recentemente vinda da metrópole, o grupo lá partiu de
mapa militar na mão. Na bagagem levavam para além das armas e munições, pregos,
martelos, picaretas, serrotes, estacas, barrotes, chapas de zinco, infindáveis
rolos de arame farpado, geradores de energia, holofotes e lanternas, material
de secretaria e enfermagem, medicamentos e uma generosa carrada de grades de
cerveja e outras bebidas alcoólicas oferecidas para aliviar a consciência dos
mandantes.
Devagar
devagarinho, por picadas toscas e repletas de perigos, o grupo lá avançou de
metralhadoras aperradas, sempre a ver quando vinha um balázio do meio da
bolanha.
Mais
de cinco horas andaram, até que chegaram ao local indicado no mapa. Rápido, os
soldados saltaram das viaturas, enquanto o capitão no centro daquela clareira
de capim rasteiro, de mãos na cintura, ia observando umas palmeiras raquíticas
no horizonte, absorto em pensamentos, fazendo uma primeira avaliação do terreno.
Então
os graduados, novos e nada experientes naquelas andanças, correram para ele
como os pintos para a galinha, que neste caso era um galo, e perguntaram
nervosos e afogueados:
-
Meu capitão qual é a prioridade … cavar as trincheiras ou erguer o arame
farpado?
Depois
de um inquietante silêncio, o capitão olhou para a sua nova equipa e exclamou
com ar imperativo:
-
Mas qual arame … quais trincheiras … vocês estão malucos … a prioridade é
construir o bar !!!
Quito
Pereira
Uma dos muitos momentos da "guerra" passados na Guiné, episódio este de certo modo pitoresco com um final inesperado...ou talvez não! O capitão deixou "sair a ordem" de acordo com a sua secura!
ResponderEliminarUm texto leve que se lê apreciando a maneira como está escrito e com a curiosidade de como terminaria!
Saia uma cerveja!
Primorosa a descrição do Quito, como aliás é seu apanágio.
ResponderEliminarSegui atento o desenvolvimento do relato, tanto mais que eu próprio, por três vezes fui incumbido de estabelecer e construir destacamentos com o meu pelotão.
A decisão mais complicada, que a mim me cabia, depois de atingido o local superiormente estabelecido, era, de facto, fixar as prioridades quanto ao inicio dos trabalhos.
Que era condicionada por diversos factores, designadamente, o perigo potencial da guerra na zona, as caracteristicas do terreno, a localização de água...
Deviamos começar por onde ?
Construir abrigos ?
Escavar trincheiras ?
Estabelecer o perimetro ?
Cercar o aquartelamento com arame farpado ?
Definir os postos de sentinela ?
Construir um forno de pão ?
Construir mesas e bancos para as refeições ?
Patrulhar a mata circundante ?
Por prosaicas que possam parecer, estas prioridades eram essenciais e era forçoso elencá-las.
Confesso que nunca me ocorreu incluir nelas a construção do Bar...
Fraco líder, tu...
Eliminar...pois,a prioridade do Capitão do Quito pelo que texto nos permite compreender tem a sua lógica !E depois as zonas de Guerra tinham graus de dificuldade diferentes,digo eu...Para onde ia o Capitão do Quito seria mais para desanuviar...As cervejas faziam parte do arsenal de relaxamento ! Mas destas vossas "estórias da guerra adoro as que também entra a Mariema...
ResponderEliminarBem, este não foi o capitão com quem tenho ainda hoje uma amizade que é mutua. Este protagonista também conheci na CCS, mas resguardei naturalmente a sua identidade.
ResponderEliminarO Rui Felício, tem a particularidade de perceber noutro registo a situação e ser leitor privilegiado, pois conheceu no terreno, como ele próprio disse, algumas particularidades impensáveis a quem nunca viveu e sofreu na pele a guerra crua.
A história da guerra da Guiné, é o somatório de milhares de estórias, na sua maioria sombrias. Mas, a espaços, algumas leves que fazem rir ou meditar no comportamento do ser humano perante desafios que se colocam em teatro de guerra.
Na verdade, só quem viveu naquele ambiente, pode entender muito do que aqui é dito.
ResponderEliminarTanto o Quito, como eu próprio, temos tido, felizmente, a preocupação de manter na sombra os momentos de medo, de explosões e tiroteios que a guerra nos aportava.
Pelo menos, no que me toca, e suponho que o Quito pensa do mesmo modo, preferimos relatar situações de boa disposição, de relacionamento com aqueles gentes de outras culturas, apreender o seu saber em intermináveis conversas...
Tal não significa que esta fosse a matriz da nossa estadia naquela terra...
Assino por baixo o comentário do Felício. Nestes textos da minha passagem pela Guiné em colaboração com o EG, com este ou aquele texto de uma verdade que não se pode escamotear - a guerra - a verdade é que é o outro lado da guerra que sempre mais me prendeu a atenção - a cultura guineense ou o lado humano em tempo de conflito. Tenho reparado que os escritos do Rui Felício sobre este tema,têm a mesma filosofia e saúdo essa sua faceta, afinal a escrita como prolongamento de uma forma de estar cordial e humanista que é seu timbre.
EliminarIsso mesmo, Quito.
EliminarÉ isso mesmo !