quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O NARIZ DO MUNDO ...






 Homenagem de Amarante a Teixeira de Pascoaes ...
(Café Bar)

Foi no aconchego de um sol outonal, que entrei em Amarante. Ali, com um pequeno grupo de amigos, companheiras e companheiros, saudei o rio Tâmega que, disfarçado de um enorme lago adormecido, banha a cidade.

Naquela claridade de uma tarde amena e soalheira, o Tâmega mais parecia um espelho de céu. Deambulei por aquela sala de visitas da urbe. Ouvi, em grupo, quadras populares de sabor brejeiro, a atestar das qualidades de  casamenteiro de São Gonçalo de Amarante, que nos fez dar sonoras gargalhadas. Penetrei no Templo e olhei a talha dourada do altar – mor. Depois saí, à procura de outras realidades.

No Café  Bar tomei uma bebida com Teixeira de Pascoaes. Sim, esse mesmo, o escritor, talvez o mais ilustre amarantino dos amarantinos. Ali estava, sentado numa mesa no interior do amplo estabelecimento. Talvez a lembrança de Fernando Pessoa no Chiado, tivesse sido a musa inspiradora daquela obra de arte, também ela de grande significado e reconhecimento da região a um dos seus mais diletos filhos.

Com uma fé repentina, lembrando-me do Santo que acabava de visitar, corri a uma tabacaria a comprar uma fração de lotaria. Tinha a esperança que a sorte divina me pudesse ajudar. Mentira. São Gonçalo, perspicaz, logo se apercebeu da minha oportunista e frouxa fé. O mesmo é dizer que não me saiu qualquer prémio. Foi justo.

Por uma rua sombria penetrei. Uma pequena e escura loja, ostentava à porta vários cabazes de belos produtos. Olhei e, num impulso, comprei duas qualidades de fruta. Dirigi-me para o interior do estabelecimento acanhado. A senhora que estava ao balcão, atendeu-me com delicadeza.

Olhei em redor e reparei que aquela poderia ser uma mercearia do século passado. Apenas a máquina - registadora moderna, era um espinho encravado naquele museu de lembranças. Ao lado, no pequeno balcão, uma criança desenhava toscamente com um lápis umas letras no caderno da escola. A página onde escrevia, parecia martirizada do tanto apagar com a borracha.

Ela - a criança - era filha da merceeira. Magra, de cabelo escorrido pelos ombros, a menina entretinha-se no seu labor. Perguntei-lhe o nome e ela respondeu-me Maria. Apenas Maria. Não tive coragem para lhe perguntar o apelido. Maria ficava-lhe bem. Porque Maria tem a beleza de nome de criança. Porque Maria tem o perfume e a força de nome de mulher.

Então, pedi a conta dos produtos adquiridos. A surpresa quando a senhora puxou de um papel e somou as duas parcelas. Depois fez a “prova dos nove” para se certificar do valor que depois registou na caixa do meu desencanto.

Revigorado com aquele regresso ao passado e a lembranças da minha infância, parti.

Depois rumar mais a norte. Entrar em domínios de Basto e cear ao calor da fogueira a crepitar. Sair à rua, respirar o ar despoluído e ver na abóbada imensa da noite estrelada, os contornos indefinidos do Monte Farinha na sua grandeza.

De manhã, ao repicar do sino, partir à aventura. Mondim na nossa rota de amizade. Há um tempo fresco que nos abraça sob a sombra protetora de Basto, o monge – guerreiro que fez frente às hordas invasoras de Tarik.

De Cabeceiras de Basto à Serra da Cabreira é um passo. De rota - batida, subimos a serra. A pequena aldeia de Moscoso é o destino. Até lá, somos surpreendidos por paisagens magníficas, Aqui e ali, o gado nos lameiros olha-nos com indiferença e, vistos ao longe, os animais parecem estáticos, como figurinhas de num presépio real.

Chegados a Moscoso, olhamos em redor.  É ali que se situa o desfiladeiro rochoso de “Nariz do Mundo”. Também o restaurante do mesmo nome. Lá dentro da sala ampla, onde deveriam estar cem clientes, estarão cerca de duzentos. Arrumam-se em mesas corridas, como sardinha em lata, e não fosse o lugar reservado atempadamente ficávamos sem almoço. 

O barulho é ensurdecedor. As travessas da posta mirandesa, do cozido à portuguesa e do cabrito assado, circulam de mão em mão pelas mesas, enquanto o vinho espesso servido em malgas brancas, escorre pelas gargantas. Um parceiro mais afoito puxa então do acordéon e o ambiente fica ao rubro. Os forasteiros saltam como uma mola e, de pé em cima das cadeiras e assobios estridentes, abafam o cantador que bem se esforça por cantar à desgarrada. Então, alguém do grupo, numa imagem bem conseguida, lá vai dizendo que o “Nariz do Mundo” não é um restaurante, é um comedouro. Estou tentado em concordar.

Cá fora, olhando em redor, percebe-se que é gente do mundo do trabalho. Gente simples que no intervalo da batalha pela vida, confraternizam em genuína amizade. Mas também se percebe que o vinho a cântaros e a carne barrosã provoca os seus estragos. Vou olhando e aponto: um dorme dentro de um carro, de boca aberta rendido a Baco. Outro ressona como um trovão. Ainda outro que, estranhamente, se queixa dos rins, quando mais provável era queixar-se do estômago, de tamanho festim. Um rancho deles, encostados a um muro em granito, gozam o sol de outono. São os vencidos da batalha gastronómica, mas não vencidos da vida.

Depois regressar. Olhar os novelos de nuvens brancas que se arrastam a trote por cima das montanhas de crinas ao vento, numa ânsia de liberdade.

Chegar a Cabeceiras de Basto aos contornos da noite. Visitar essa pequena pérola que é a Casa do Tempo. Em cada prateleira, em cada objeto, um pedaço de história das nossas gentes. De um pretérito presente. E ele – o Basto – também lá está esculpido em granito, como que agradecendo a visita.

Voltar à lareira gentil que nos aquece a alma. Lembrar o “Nariz do Mundo” e os povos residentes. Meditar na generosidade dos seus habitantes que, dia a dia, ajudam a edificar uma nação que é a nossa, longe dos jogos de poder, das intrigas palacianas, dos interesses obscuros e das ganâncias mal disfarçadas dos barões da capital.

Constatar que há uma outra realidade. Uma outra gente. A gente simples de um nobre povo que é o nosso. Afinal, a doce certeza que lá, naquele rincão de mundo, há uma Pátria com nove séculos de história que renasce todos os dias pelo labor dos seus filhos anónimos. Ou simplesmente pelo som festivo de um acordéon, de um tambor ou de um cavaquinho. A exaltante certeza que nos revigora o espírito de que existe um outro Portugal. Um Portugal  profundo, fraterno e solidário, que não morreu.
Quito Pereira                      

4 comentários:

  1. Belo retrato de um país em que, apesar de algo "constipado", o olfacto não impede e até nos relembra que ainda é nosso.
    Obrigado Quito por este "cheirinho"!

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  2. Neste teu texto percorres uma parte do chamado Portugal Profundo, desta vez, em andanças com os teus companheiros, por terras bem do norte de Portugal.
    É um texto bem ao teu estilo a que já nos habituaste, e ao longo dele todos os pormenores do modo de viver dos habitantes, da riqueza das suas igrejas, de grupos que cantam as quadras brejeiras em honra de São Gonçalo. Aqui até já eu as cantei.
    São Gonçalo de Amarante
    Casamenteiro das velhas
    Porque não casais as novas?
    Que mal te fizeram elas?
    Saia uma bebida no Bar onde está Teixeira de Pascoais..Mas a posta Mirandesa ou Barrosã não vos escapou no tal comedouro do Nariz do Mundo.
    E assim nos vais dando a conhecer mais em pormenor lugares de Portugal que já visitei mas nessas alturas muitos desses pormenores nos escapam.
    Um abraço

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  3. Foste dar o passeio para te empanturrares de bom cabrito, boas postas mirandesas e bom vinho e afinal ofereces-nos este excelente texto, como quem diz: Tomem lá e apreciem as belezas do nosso Portugal, que não é só comes-e-bebes.
    Bem podias acompanhar com umas fotos da São, mas fica para a próxima.
    Aquele abraço

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  4. Seja qual seja o tema, a tua prosa descreve com tal pormenor o que vês e sentes que nós, leitores, estamos contigo, a ver sentir como tu. Este texto fala-nos do norte do pais com detalhes de que nem todos se apercebem numa descrição deliciosa da tua última viagem. Bom ano

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