Todos os dias há tragédias. Passo
a passo, somos confrontados pelos canais de televisão e pelos jornais com
acidentes graves. Na semana passada, fomos alertados para um desastre aéreo, lá
para a zona nortenha de Valongo. Uma desgraça noturna, numa noite escura de
chuva miudinha e enervante. Confesso que a notícia me apanhou de raspão.
Entretido que estava, só mais tarde me apercebi que a aeronave era um
helicóptero do INEM. Fiquei constrangido e depois em desassossego, quando soube
que o médico que seguia a bordo era espanhol. Porque espanhol é o meu amigo
Roman, que é médico. E médico do INEM. Nesta ditadura de uma mobilidade
imposta, nada me dava a certeza que Roman não seguisse a bordo da aeronave.
Mais tarde, indícios precisos tranquilizaram-me. Com Roman, cruzei-me nos
caminhos da vida. Uma empatia mútua que se estendeu às nossas famílias, fazia -
nos por vezes confraternizar no restaurante albicastrense do Jorge, em amena
conversa entre um prato de grelhados e um vinho tinto a preceito. A conversa
passava pela banalidade da sua simpatia desportiva pelo Atlético madrileno ou
pelas traquinices do seu pequeno e único filho. De outras vezes, a conversa era
mais séria e falava – me das noites em que em ambulâncias a galope, percorria a
noite da Beira Baixa, num destino de muitos quilómetros para, debaixo de um
candeeiro de iluminação pública, acertar com a agulha na veia de um sinistrado
em falência de vida.
Na minha casa albicastrense, eu
morava a escassa distância do heliporto dos bombeiros voluntários. Muitas
vezes, a horas tardias e no coração da madrugada, o helicóptero do INEM rasava
o telhado do prédio num barulho ensurdecedor. E eu levantava-me e, da minha
tribuna alta, observava todos os movimentos. A azáfama dos bombeiros de volta
da nave. Também gente de camisola branca, que verificava todos os suportes de
vida do aparelho, para o paciente que havia de chegar. Depois, como num filme cem
vezes repetido, a ambulância aparecia devagar. Com mil cuidados, o doente e um
frasco de soro, eram levados para o interior do heli, que em grande aceleração
das suas pás rotativas, se erguia lentamente no ar, para girar sobre si próprio
e definir a rota que, na maioria das vezes apontava a Coimbra. E eu ali ficava
à janela, a olhar a luz intermitente encarnada na cauda do aparelho, até se
diluir na noite escura, em direção às montanhas. Depois deitava-me e muitas
vezes fiquei acordado, a pensar naquele voo de amor por alguém em perigo de
vida. Conhecedor que era e sou da orografia do terreno e de uma viagem aérea
sobre montanhas e vales, eu interrogava-me se numa emergência técnica, a
tripulação teria uma escapatória de salvação pelo acidentado da paisagem
escura, pontuada aqui e ali pelas luzes ténues de pequenos povoados esquecidos
no Tempo. Lembrava então aquelas cinco almas que iam a bordo e de uma forma instintiva,
eu dava comigo a murmurar uma pequena prece, para que chegassem todos salvos ao
Hospital Universitário de Coimbra. E hoje, depois deste triste acidente e olhando
aquela realidade sinistra, medito nas noites de invernia que na comodidade dos
nossos lares e de uma lareira a crepitar no conforto do nosso programa de
televisão favorito, temos ausentes no nosso pensamento aqueles que voam por
cima das montanhas em noites de breu e por vezes de intempérie, no cumprimento
da sua missão, mas também num ato comovente de amor e solidariedade por quem
deles necessita. Para aqueles que se interrogam sobre as complexidades de tudo
o que é transcendental e perguntam a si próprios se haverá anjos nos céus de
Portugal, eu respondo de uma foram pragmática e convicta: claro que os há !!!
Q.P.
Como simples cidadão, aqui deixo este pequeno texto em Memória e Homenagem ás vitimas de Valongo, que perderam a vida em defesa da VIDA:
ResponderEliminar- João Lima
- Luís Rosindo
~ Daniela Silva
- Luís Vega
Em 1971 era eu oficial de reconhecimento no comando do batalhão do Mayombe, quando o helicóptero de evacuação de feridos falhou as comunicações e foi aterrar direitinho no quartel do MPLA. Estou a ver este filme pela segunda vez, agora com uma tragédia maior. É preciso apurar quem foi que permitiu este voo agora, jade noite, e pelo único trajeto, para quem perceba o mínimo de topografia, era de todo proibitivo. Mesmo aceitando o risco, não haveria um outro local onde fosse possível o reabastecimento? Averigue-se.
ResponderEliminarOportuna a postagem e o texto muito de acordo com esta tragédia!
ResponderEliminarUm excelente texto, infelizmente a propósito de um trágico acidente.
ResponderEliminarSobre o acidente em si, acho que se devem averiguar as causas, sim. Mas devíamos recuar um pouco e analisar porque é que há um rodopio de ambulâncias e helicópteros pelo país todo e se fecham hospitais e alguns com todas as valências!...
O sentido de oportunidade, o espírito de observação, a instintiva preocupação sobre a hipótese de o desastre poder ter envolvido o seu amigo Ramon, estão bem patentes nas duas principais facetas do Quito Pereira:
ResponderEliminar- a sensibilidade
- a matriz de escritor
Uma linda homenagem este texto do Quito pena que seja por tão triste motivo
ResponderEliminarSempre que me deparo com algum acidente de carro, instintivamente, ligo para todos os filhos para saber se estão bem, especialmente quando a via, onde aconteceu o sinistro, é, por algum motivo, caminho deles, também.
ResponderEliminarNaturalmente que não digo, após saber que estão bem: "Ainda bem que não foi com eles!"
Ao contrário, agradeço a Deus por protegê-los e aproveito para pedir que a(s) vítima(s) estejam bem.
Comovente e tão real o que nos descreves!
ResponderEliminarHá realmente "anjos no céu"...