terça-feira, 18 de dezembro de 2018

EM NOME DA VIDA ...






Todos os dias há tragédias. Passo a passo, somos confrontados pelos canais de televisão e pelos jornais com acidentes graves. Na semana passada, fomos alertados para um desastre aéreo, lá para a zona nortenha de Valongo. Uma desgraça noturna, numa noite escura de chuva miudinha e enervante. Confesso que a notícia me apanhou de raspão. Entretido que estava, só mais tarde me apercebi que a aeronave era um helicóptero do INEM. Fiquei constrangido e depois em desassossego, quando soube que o médico que seguia a bordo era espanhol. Porque espanhol é o meu amigo Roman, que é médico. E médico do INEM. Nesta ditadura de uma mobilidade imposta, nada me dava a certeza que Roman não seguisse a bordo da aeronave. Mais tarde, indícios precisos tranquilizaram-me. Com Roman, cruzei-me nos caminhos da vida. Uma empatia mútua que se estendeu às nossas famílias, fazia - nos por vezes confraternizar no restaurante albicastrense do Jorge, em amena conversa entre um prato de grelhados e um vinho tinto a preceito. A conversa passava pela banalidade da sua simpatia desportiva pelo Atlético madrileno ou pelas traquinices do seu pequeno e único filho. De outras vezes, a conversa era mais séria e falava – me das noites em que em ambulâncias a galope, percorria a noite da Beira Baixa, num destino de muitos quilómetros para, debaixo de um candeeiro de iluminação pública, acertar com a agulha na veia de um sinistrado em falência de vida.
Na minha casa albicastrense, eu morava a escassa distância do heliporto dos bombeiros voluntários. Muitas vezes, a horas tardias e no coração da madrugada, o helicóptero do INEM rasava o telhado do prédio num barulho ensurdecedor. E eu levantava-me e, da minha tribuna alta, observava todos os movimentos. A azáfama dos bombeiros de volta da nave. Também gente de camisola branca, que verificava todos os suportes de vida do aparelho, para o paciente que havia de chegar. Depois, como num filme cem vezes repetido, a ambulância aparecia devagar. Com mil cuidados, o doente e um frasco de soro, eram levados para o interior do heli, que em grande aceleração das suas pás rotativas, se erguia lentamente no ar, para girar sobre si próprio e definir a rota que, na maioria das vezes apontava a Coimbra. E eu ali ficava à janela, a olhar a luz intermitente encarnada na cauda do aparelho, até se diluir na noite escura, em direção às montanhas. Depois deitava-me e muitas vezes fiquei acordado, a pensar naquele voo de amor por alguém em perigo de vida. Conhecedor que era e sou da orografia do terreno e de uma viagem aérea sobre montanhas e vales, eu interrogava-me se numa emergência técnica, a tripulação teria uma escapatória de salvação pelo acidentado da paisagem escura, pontuada aqui e ali pelas luzes ténues de pequenos povoados esquecidos no Tempo. Lembrava então aquelas cinco almas que iam a bordo e de uma forma instintiva, eu dava comigo a murmurar uma pequena prece, para que chegassem todos salvos ao Hospital Universitário de Coimbra. E hoje, depois deste triste acidente e olhando aquela realidade sinistra, medito nas noites de invernia que na comodidade dos nossos lares e de uma lareira a crepitar no conforto do nosso programa de televisão favorito, temos ausentes no nosso pensamento aqueles que voam por cima das montanhas em noites de breu e por vezes de intempérie, no cumprimento da sua missão, mas também num ato comovente de amor e solidariedade por quem deles necessita. Para aqueles que se interrogam sobre as complexidades de tudo o que é transcendental e perguntam a si próprios se haverá anjos nos céus de Portugal, eu respondo de uma foram pragmática e convicta: claro que os há !!!
Q.P. 
     

8 comentários:

  1. Como simples cidadão, aqui deixo este pequeno texto em Memória e Homenagem ás vitimas de Valongo, que perderam a vida em defesa da VIDA:

    - João Lima
    - Luís Rosindo
    ~ Daniela Silva
    - Luís Vega

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  2. Em 1971 era eu oficial de reconhecimento no comando do batalhão do Mayombe, quando o helicóptero de evacuação de feridos falhou as comunicações e foi aterrar direitinho no quartel do MPLA. Estou a ver este filme pela segunda vez, agora com uma tragédia maior. É preciso apurar quem foi que permitiu este voo agora, jade noite, e pelo único trajeto, para quem perceba o mínimo de topografia, era de todo proibitivo. Mesmo aceitando o risco, não haveria um outro local onde fosse possível o reabastecimento? Averigue-se.

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  3. Oportuna a postagem e o texto muito de acordo com esta tragédia!

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  4. Um excelente texto, infelizmente a propósito de um trágico acidente.
    Sobre o acidente em si, acho que se devem averiguar as causas, sim. Mas devíamos recuar um pouco e analisar porque é que há um rodopio de ambulâncias e helicópteros pelo país todo e se fecham hospitais e alguns com todas as valências!...

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  5. O sentido de oportunidade, o espírito de observação, a instintiva preocupação sobre a hipótese de o desastre poder ter envolvido o seu amigo Ramon, estão bem patentes nas duas principais facetas do Quito Pereira:
    - a sensibilidade
    - a matriz de escritor

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  6. Uma linda homenagem este texto do Quito pena que seja por tão triste motivo

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  7. Sempre que me deparo com algum acidente de carro, instintivamente, ligo para todos os filhos para saber se estão bem, especialmente quando a via, onde aconteceu o sinistro, é, por algum motivo, caminho deles, também.
    Naturalmente que não digo, após saber que estão bem: "Ainda bem que não foi com eles!"
    Ao contrário, agradeço a Deus por protegê-los e aproveito para pedir que a(s) vítima(s) estejam bem.

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  8. Comovente e tão real o que nos descreves!
    Há realmente "anjos no céu"...

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