Prenúncio de morte, prenúncio de sorte ...
É uma rua singela que desce para o mar. Uma rua empedrada, que
vem do alto da muralha e se espreguiça morro abaixo. De ambos os lados, nas
margens da rua, que se vai estreitando em forma de funil, muitas lojas. São espaços
pequenos de modesto comércio. Mas lojas coloridas e festivas, de todo o género
de mercadoria e poder de compra da bolsa de cada um. No cimo da rua, do lado
esquerdo, está um Café. Dentro do Café, está sentado um homem. Esse homem sou
eu. Naquela pequena mesa tão a meu gosto, estão mais três cadeiras. Duas delas
não estão vazias. Ali, em pesado silêncio, sentam-se Duas Memórias. A Memória
de dois amigos de tempo de férias, que partiram para o Infinito em escasso
espaço de tempo – o Eduardo Castro e o Jorge de Sá Couto. Eram ambos do norte. Não
os esquecerei. Na cadeira que resta, senta-se o dono do Café, quando o
estabelecimento está vazio. Falamos de tudo e de nada e eu vou olhando o pulsar
da rua. A senhora de idade simpática que passeia o seu cão pela trela. O casal
inglês que conduz o carrinho de bebé. Ela é pequena e bonita. Ele é alto, traz
uma tatuagem numa perna, um brinco numa orelha e os braços vermelhos deste sol
enganador de maio. Um sol que arde sem se ver. E a jovem asiática que, de calções
curtos, mochila às costas e mapa turístico na mão, vai de cabeça erguida
tentando decifrar os mistérios da cidade. Naquela tarde, o Zé Manel está
sentado a meu lado a olhar a rua do meu conforto. Então, como gaivotas, um grupo
de turistas de idade jovem, pousa na pequena esplanada. O Zé Manel levanta-se,
pega na bandeja e vai apontando os pedidos daqueles clientes de ocasião. É um
vai - vem de bandeja, com cervejas, sumos, torradas, bolos e sandes. Comem e
bebem como se não houvesse amanhã e eu vou olhando o semblante do meu amigo,
que ferve em pouca água e parece começar a ficar irritado com tanta exigência.
Depois, com os estrangeiros naquele festim de gula, vem sentar-se novamente
junto de mim. Para lhe amenizar o desconforto, vou-lhe lembrando aquela máxima de
que “à medida que vamos comendo, vamos perdendo o apetite”. Uma jocosa verdade
de La Palice, como que fazendo-lhe perceber, que ao bando de gaivotas de papo
cheio, já só lhes resta pagar a conta e partir. Não me enganei. Entre cantigas
e risos, desceram a rua felizes. O Zé Manel, agora já folgado e para surpresa
minha, disse que também me ia contar uma história de La Palice, afiançando – me
ter acontecido. Foi buscar um café para ele, misturou-lhe uma pitada de
adoçante e narrou – me este acontecimento que se perde no Tempo:
- Havia em Lagos, um pescador chamado Manuel. Era pobre e ia para a faina no seu pequeno barco a remos. Um dia, olhando o mar sereno, dobrou a barra e aventurou-se mais do que devia. Então, uma corrente traiçoeira foi levando o pequeno batel para o largo. Bem remou o Manuel em desespero, mas em vão. Horas depois e sem comunicação, estava ao largo de Sagres. A esperança de o barco bater contra as rochas desvaneceu-se, com a corrente a levá-lo ainda mais mar adentro. Cansado, rendeu-se e meditava agora que o mar que tinha sido seu modo de vida, era agora seu prenúncio de morte. Puxado cada vez mais para o lugar de ninguém, viu-se na rota dos grandes navios e a sorte ajudou-o. Um cargueiro avistou-o e rapidamente procederam à recolha do náufrago. Exausto e em hipotermia, foi levado para a enfermaria do navio, onde forneceu todas as informações que lhe pediram. Mais tarde, já com a capitania de Lagos avisada, uma corveta da Marinha Portuguesa resgatou o Manuel e trouxe-o para terra. No cais, tinha muitos amigos da faina à espera dele, de lágrimas nos olhos. E a mulher, que para ele correu de braços abertos e que em pranto lhe disse:
- Manuel … Manuel … foi Deus que te salvou …
E ele, ainda de olheiras fundas e rosto sofrido, abraçou – a
com carinho e respondeu – lhe ao ouvido e em surdina:
- Não mulher … não foi Deus que me salvou … quem me salvou foi
um cargueiro norueguês …
Q.P.
Aqui temos em boa escrita flagrantes da vida real.
ResponderEliminarE Lagos mais uma vez e com as suas figuras típicas é o local ideal para estas histórias de verão.
Abraço
O Ze Manel contou a sua história pela tua pena.
ResponderEliminarSeria uma verdade de La Palice se eu dissesse que a narrativa ganhou asas de sonho no imaginário da tua vida pelas terra do Sul onde a terra acaba e o mar começa.
Onde não te limitas a estar, onde observar...
Porque observar é apanágio do escritor.
Sim , so nossos portugueses tem essa faculdade de por no apapel a descricao de nossas emocoes de nossas paizagens, dos sonhos e viagens para nos fazerem sonhar.. obrigada QUITO pela tua deliciosa "pluma"...BEIJINHOS
ResponderEliminarÉ verdade que escrevi a história pela minha pena e pela boca dele. Estive indeciso em a publicar, pois podia ferir as convicções religiosas do leitor, que respeito e nem sequer estão em causa. Agradeço os vossos comentários, na certeza de que em troca, também tenho linhas de escrita com que me brinda por exemplo o meu amigo Rui Felício, que "escreve por dois", no dizer do nosso saudoso amigo Jorge Carvalho. Obrigado
ResponderEliminarBom, para mim, sem "ferir as convicções religiosas do leitor", penso mesmo que tenha sido Deus quem enviou um cargueiro norueguês àquele momento.
Eliminar(Mas deixo que ele pense ter sido mesmo o cargueiro).
Um abraço Quito.
ResponderEliminarÀ boleia do teu comentário despertaste em mim a saudade do Jorge Carvalho que Deus tenha em descanso.