quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

MILAGRE DE NATAL

Milagres de Natal

Para haver um milagre é preciso coisa pouca: quem o faça e quem dele receba a graça. Não querendo perorar sobre o conceito, caio num caminho mais modesto de afirmar que os milagres acontecem todos os dias aos olhos de uma criança que tem anseios ou de um pai e marido que espera por dias melhores.  

Só mesmo um milagre poderia acontecer para que aquele Natal fosse Natal, pelo menos para que, naquela casa, os dias tivessem a cor, o cheiro e os sons do Natal. O médico trazia a mulher desenganada e remetera-a para o Porto, para o Hospital da Prelada, onde uma cirurgia de recurso poderia prolongar-lhe os dias. Eram pobres e, ainda jovens, já tinham oito filhos que consumiam os parcos recursos que a quinta lhes fornecia. 

Com a mulher internada, lá longe, ele tentava que aquele dia de consoada fosse, ainda assim, uma evocação dos dias felizes e, com a cumplicidade das filhas mais velhas, asseara o canto da cozinha onde a mesa negra de castanho envelhecido acomodava toda a família. Pusera a toalha de linho que a mulher guardava ciosamente para os dias de festa e nesse dia cada um comeria do seu prato e não dos pratos de partilha que geralmente ocupavam o centro da mesa. A couve de Natal fumegava num dos potes, enquanto no outro acabavam de cozer as batatas com bacalhau.
Os mais cachopos procuravam o brilho dos dias felizes, mas faltava-lhes a mãe que tinha aqueles abraços galinha, que os confortava em todas as situações. Seria uma triste noite de consoada, uma triste manhã de Natal e outros tristes dias se avizinhavam.  O médico tinha dito que não passaria do inverno e que seria melhor deitar os corações ao largo.

Quando se sentavam à mesa, ouviram bater à porta: decerto alguma vizinha a pedir um fio de azeite ou uma pitada de sal para o tempero da ceia, coisas que só podiam ser compradas na venda, que a esta hora já estaria fechada. Ele foi abrir e viu à sua frente o rosto da mulher, pálida, mortiça, envolta num xaile de lã que a abrigara do frio desde o apeadeiro da Ermida até à aldeia. Abraçou-a e os filhos acorreram em bando a beijar a mãe, que os abraçava a todos, com um coração em forma de mãos. Como era possível a mãe estar aqui? Então não estava no hospital?
– Pois sim, deveria ser isso, mas o doutor disse que estou bem melhor e que já não é preciso ser operada.

A cachopada celebrava a presença da mãe, uns em silêncio, outros em lágrimas de felicidade e a consoada foi feliz como não era há anos. Nessa noite ninguém se deitaria antes de ser Natal e à luz do candeeiro de petróleo jogou-se ao Rapa, ao “par ou pernão” com os confeitos, ouviram-se cânticos de Natal no velho rádio sintonizado na Emissora Nacional e até foi bebido vinho do Porto com as fritas de botelha e as orelhas-de-abade. Só um milagre explicava tamanha alegria.

Quando se foram recolher, explicou ao marido que estava por um fio e que o médico desistira, primeiro do que ela. A vida estava a esgotar-se e que muito lamentava a tristeza que via nos olhos do homem da sua vida.
– Deixa lá, – disse-lhe ele, com a voz embargada – hoje foste milagre para oito!

Antonino Silva

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