Milagres de Natal
Para haver um milagre é preciso coisa pouca: quem o faça e
quem dele receba a graça. Não querendo perorar sobre o conceito, caio num
caminho mais modesto de afirmar que os milagres acontecem todos os dias aos
olhos de uma criança que tem anseios ou de um pai e marido que espera por dias
melhores.
Só mesmo um milagre poderia acontecer para que aquele Natal
fosse Natal, pelo menos para que, naquela casa, os dias tivessem a cor, o
cheiro e os sons do Natal. O médico trazia a mulher desenganada e remetera-a
para o Porto, para o Hospital da Prelada, onde uma cirurgia de recurso poderia
prolongar-lhe os dias. Eram pobres e, ainda jovens, já tinham oito filhos que
consumiam os parcos recursos que a quinta lhes fornecia.
Com a mulher internada, lá longe, ele tentava que aquele dia
de consoada fosse, ainda assim, uma evocação dos dias felizes e, com a
cumplicidade das filhas mais velhas, asseara o canto da cozinha onde a mesa
negra de castanho envelhecido acomodava toda a família. Pusera a toalha de
linho que a mulher guardava ciosamente para os dias de festa e nesse dia cada
um comeria do seu prato e não dos pratos de partilha que geralmente ocupavam o
centro da mesa. A couve de Natal fumegava num dos potes, enquanto no outro
acabavam de cozer as batatas com bacalhau.
Os mais cachopos procuravam o brilho dos dias felizes, mas
faltava-lhes a mãe que tinha aqueles abraços galinha, que os confortava em
todas as situações. Seria uma triste noite de consoada, uma triste manhã de
Natal e outros tristes dias se avizinhavam. O médico tinha dito que não
passaria do inverno e que seria melhor deitar os corações ao largo.
Quando se sentavam à mesa, ouviram bater à porta: decerto
alguma vizinha a pedir um fio de azeite ou uma pitada de sal para o tempero da
ceia, coisas que só podiam ser compradas na venda, que a esta hora já estaria
fechada. Ele foi abrir e viu à sua frente o rosto da mulher, pálida, mortiça,
envolta num xaile de lã que a abrigara do frio desde o apeadeiro da Ermida até
à aldeia. Abraçou-a e os filhos acorreram em bando a beijar a mãe, que os
abraçava a todos, com um coração em forma de mãos. Como era possível a mãe
estar aqui? Então não estava no hospital?
– Pois sim, deveria ser isso, mas o doutor disse que estou
bem melhor e que já não é preciso ser operada.
A cachopada celebrava a presença da mãe, uns em silêncio,
outros em lágrimas de felicidade e a consoada foi feliz como não era há anos.
Nessa noite ninguém se deitaria antes de ser Natal e à luz do candeeiro de
petróleo jogou-se ao Rapa, ao “par ou pernão” com os confeitos, ouviram-se
cânticos de Natal no velho rádio sintonizado na Emissora Nacional e até foi
bebido vinho do Porto com as fritas de botelha e as orelhas-de-abade. Só um
milagre explicava tamanha alegria.
Quando se foram recolher, explicou ao marido que estava por
um fio e que o médico desistira, primeiro do que ela. A vida estava a
esgotar-se e que muito lamentava a tristeza que via nos olhos do homem da sua
vida.
– Deixa lá, – disse-lhe ele, com a voz embargada – hoje
foste milagre para oito!
Antonino Silva
Lindo, Antonino, este verdadeiro milagre dos que acreditam!
ResponderEliminarFeliz Natal 🤶