quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

NAQUELA NOITE ...



 (foto net)
Debaixo do grande embondeiro, olhávamos a mata. Há muito que a noite caíra e ao longe, de uma forma difusa, só o porte das palmeiras sobressaía num horizonte de silêncios. Apenas a espaços, o grito longínquo de algum macaco e o piar das aves noturnas. E nós, soldados, ali estávamos, olhando as esquinas do infinito no vasculhar de todos os perigos. Então, num ápice, uma série de estrondos ao longe. Era sons cavos, que pareciam nascer das entranhas da Terra. Rápido e pelas comunicações, logo soubemos que era um ataque com morteiros ao quartel de Dara. Depois, veio uma ordem superior para partir. De tentar cortar a retirada ao inimigo. De lhe infligir a desforra. Sob um céu semeado de estrelas, fomos tragados pela noite. Por picadas estreitas e uma abóbada de breu, apenas os passos perdidos das nossas botas de caminhantes forçados. Passo a passo, em marcha lenta por vezes e acelerada por outras. Na frente da coluna, um africano que conhecia o terreno palmo a palmo. Voltas e mais voltas naquela floresta de inferno, o cantil da água a balançar no cinto e o dedo crispado no gatilho da metralhadora. E eles, os malditos mosquitos, a comerem-nos a cara, sedentos do nosso suor, naquela noite de labirintos traiçoeira e morna. De repente, da frente veio uma ordem para parar. Acocorados no chão, o coração a bater a descompasso, escutávamos a noite. Então o nosso pisteiro, ajoelhado no chão, observou atentamente o trilho. Experiente, estudou as pegadas, que logo reconheceu serem frescas. Conseguiu até concluir que o grupo inimigo teria passado ali há cerca de vinte minutos. Nós, graduados, reunimos e em surdina naquele palco de sombras, cedo chegámos à conclusão que seria missão impossível encetar uma perseguição naquela terra de ninguém. Ele, o grupo agressor, caminhava agora para o Boé, a sua zona de conforto. E nós, de arma aperrada e viajando pela noite de todos os medos, regressámos à nossa Base. Chegámos ilesos, mas feridos na nossa autoestima a pisar o vermelho. Naquela noite, mandaram - nos para a boca do lobo. Se houvesse refrega e infligíssemos baixas no inimigo, patentes militares sem rosto e sem nome recolheriam os louros da vitória. Se alguns de nós caíssem, tombariam anónimos. Apenas as lágrimas das famílias. Apenas a saudade dos amigos. Apenas os rostos fechados dos camaradas de armas.


Os degraus do abrigo subterrâneo que se descem. A metralhadora que se encosta junto ao leito. O cantil da água que se bebe sofregamente, antes de recolhermos ao nosso catre de ferro. O suor que escorre do queixo para o peito desnudado. A ventoinha do teto que não deixa de girar a tentar sacudir o calor doentio. A boa noticia que nos chega, que em Dara os nossos militares não tinham sofrido qualquer baixa no bombardeamento. Então, cansados, os sete homens que ocupávamos aquele abrigo saudámo - nos num novo renascer e fechámos a luz para dormir. Menos o Delfim que, com o auxílio do seu pequeno candeeiro de cabeceira que debitava um clarão mortiço, ficou sentado na cama a ler a Bíblia.
Q.P.         

3 comentários:

  1. Era certo e sabido.
    Quando havia notícia de um bombardeamento na quadrícula da unidade militar a que pertenciamos, uma ordem vinda dos altos quadros aboletados em zona de conforto, determinava a imediata perseguição ao inimigo.
    Sem planeamento, sem informação, apenas para alimento do orgulho guerreiro dos chefes...
    Que sabiam antecipadamente que o resultado seria nulo.
    Ou, na pior das hipóteses, redundar ia em baixas da parte dos soldados que às cegas percorriam trilhos que só os guerrilheiros conheciam.
    Como diz o Quito, com o coração a descompassado.
    Desse sofrimento não se livravam.

    Lee a Bíblia era o escape para acalmar a ansiedade sofrida.

    Que bem descreve o Quito o percurso no meio da mata. Quem por lá andou revive essas sensações felizmente ir repetiveis mas jamais o vida das.

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  2. A mim, que só fiz tropa a brincar, isto arrepia-me.
    Bem hajas, Quito, por nos fazeres "viver" esses momentos.

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  3. Este é um texto mais "pesado" no seu conteúdo e que o seu "peso" está bem complementado no comemtário do Rui Felício!
    Também como eu que fiz a tropa por cá não posso ficar indeferente aos horrores da guerra e às situações de risco extremo que se passavam nestas guerras coloniais.
    Um abraço

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