terça-feira, 11 de dezembro de 2018

NA GUINÉ FUI SOLDADO


Tomava o comprimido de Resoquina regularmente e só bebia água depois de passada pelo filtro de porcelana, mas mesmo assim, por lá apanhei paludismo por três vezes e o micróbio injectado pelos mosquitos, bem acomodado no sangue , fez-me sofrer a terrível doença outras tantas vezes, já depois de regressado a Portugal. Estes cuidados primários eram perdidos quando saíamos dos quartéis, para fazer a guerra, chafurdando na lama cinzenta dos charcos, debatendo-nos enrolados no medonho turbilhão dos tornados, derretendo-nos na fornalha de um sol encoberto, dissolvendo-nos debaixo da impiedosa chuva vertical que nos encharcava os ossos. Por vezes, o cheiro a pólvora entranhava-se nas narinas misturado com os aroma bala perdida. E, no entanto, amei e amo aquela terra que me secou, que me fez sofrer, e amei e amo aquelas gentes simples que me ensinaram tantas coisas, porque nunca o preço do amor é demasiado e nem a morte e o sofrimento o podem aniquilar. Porque nada há que pague o deslumbramento de um pôr-do-sol por trás dos verdes palmeirais, nem o longínquo som dos batuques africanos nas noites serenas. Nada há que pague as intermináveis conversas com os homens-grandes da tabanca sobre a História da Guiné, em cálidas noites sob um céu estrelado como nunca vi na minha Coimbra. Não tem preço a singeleza dos olhos doces de uma elegante e ágil gazela a fitarem-nos, assomando-se-lhe duas lágrimas pela morte de um filhote caído numa armadilha. Nem, muito menos, a intensa vidamas doces da selva, acelerando o coração apertado pelo medo... Os vómitos constantes, a desidratação, as dores do corpo e as febres altas, deixavam-me numa prostração que me fazia preferir a morte por algu animal e vegetal que ao raiar do dia explode e desabrocha, reduzindo-nos a uma pequenez neste fantástico mundo que, com a nossa estúpida prosápia de senhores do Universo, queremos destruir. 
Rui Felício

Reposição de publicação de 17-11-2010

3 comentários:

  1. Esses "déjà vus", realmente vistos, sentidos e experimentados na própria pele, Rui, só me fazem ter uma admiração maior por esses combatentes de guerra, seja qual o lado que estejam lutando, porque todos eles têm algo em comum: não foram à guerra por livre vontade. Ambos os lados têm amores deixados, famílias que se martirizaram de tanta saudade e angústia.
    A Guerra é, sobremaneira, útil e inútil. É justa e injusta. Mas foi e sempre será...dolorida.

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  2. Um dia, se tiver tempo e este blogue tiver vontade de existir, vou falar-vos desta guerra. E de nós, os que por lá andámos. Hoje, votados à indiferença dos poderes, ou de quem nunca ouviu o zumbido de um mosquito da água estagnada da bolanha. Ou a voz de um morteiro. Ou o troar de um canhão. Ou o estrondo avassalador de um foguetão. O paludismo que também me atacou. Aqueles comprimidos de sabor horroroso. Os dias cama, com a febre a minar- nos e a fraqueza generalizada. O texto é belo na sua crueza. Mas havia o outro lado, tão bem descrito e aqui relatado pela pena do escritor - autor. Tudo se torna mais impiedoso, quando o oficial que também é soldado, tem nas veias a sensibilidade que não lhe permite viver de mãos dadas com a guerra bruta para que o lançaram.

    Como a bela cauda de um cometa, ficou um rasto de amizade entre camaradas de armas. Na passada semana, oito de nós que por lá andámos, bebemos vinho e água fresca das minas transmontanas. Subimos ao Castelo de Celorico de Basto de antigas façanhas. Recordámos o General Basto e a sua bravura. Trocámos brindes ao crepitar da lareira e elas, as nossas companheiras, a partilhar daquele momento de aconchego de homens que foram meninos imberbes de metralhadora na mão. Nem tudo foi mau.

    Obrigado, Rui Felício ...

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