O futuro foi ontem ...
Há um Tempo que partiu. Um Novo Tempo que chegou. Aqui, nesta
vazio espacial, somos senhores e vassalos de nós próprios. Caminhamos errantes
por léguas e léguas sem fim. Embarcámos nesta nave feita de granito, que nos
endurece a face. Mas não há lágrimas. Aceita-se o presente. Do passado, apenas
um sussurro, que se pressente no silêncio avassalador das montanhas. A reta da
Esteveira, é um traço negro de alcatrão, riscado no meio do nada. Ali, do lado
esquerdo, por entre dois pequenos montes redondos adornados de pinheiros,
aparecem, como por mistério, os telhados simples de um povoado que se esconde,
como que envergonhado do seu berço singelo. Barbaído se chama, aquele recanto
beirão, onde habitam cerca de cem almas. Por uma estrada estreita e sinuosa, lá
chegamos. Ali, naquele vale polvilhado de um aglomerado disperso, vivem-se dois
extremos. O clamor do sol impiedoso do verão e o frio cortante do inverno,
onde, por vezes, é difícil o acesso da camioneta da carreira, por causa da
neve. Naquele Lugar, também houve um Tempo que partiu. E um Novo Tempo que
chegou. Um momento comemorado de forma simples. Tão simples como as suas gentes.
É no pequeno Centro Desportivo e Cultural da aldeia, que se assiste à reunião
dos que moram nas cercanias da Serra da Raposa e que por ali passam ou ouvem
nas noites após os dias de trabalho árduo na courela, percursos sofridos de
vida. Naquele serão tão especial, alguns, os mais novos que ainda resistem ao
drama da desertificação, juntam-se para conviver e celebrar a chegada do Novo
Ano. Longe do bulício endinheirado das festas do Funchal, do carnaval
antecipado da Serra da Estrela ou do requinte apenas acessível a alguns do
casino do Estoril, Barbaído emerge do fundo do seu próprio Tempo e da sua
solidão ancestral. Ali, lá, é o arado a batuta que rege a sinfonia da vida.
Quando do remexer da terra fofa e pródiga, se assiste ao milagre da generosidade
das sementeiras, a oferecer ao Homem o produto do seu esforçado labor. É esse, para
estas gentes, o significado da palavra renascer. Um recomeçar que não se traduz
no virar da página de um simples calendário. Mas no murmúrio de uma prece, dita
no recato do lar, que se não troca por uma bandeja de fogo de mil cores a
estrelejar no ar, ou por uma taça de cristal a transbordar de champanhe. Lá
fora, naquela noite de desejos e de esperanças para muitos nas mais diversas
latitudes, apenas na nossa retina a humidade baça que invade as ruas estreitas e
o casario, por entre a luz difusa e mortiça dos candeeiros a iluminar cada beco
e cada esquina. É o suspiro conformado da alma, em Tempo de invernia …
Q.P.
Excelente texto que realça a diferença da passagem de ano entre Aldeias do Portugal desertificado e o frenético passar de ano nos grandes centros populacionais, cidades ou vilas.
ResponderEliminarSão os tempos que correm! Simplicidade e isolamento em contraponto com o aparato e deslumbramento!
O texto não é só excelente. Revela também um estilo de elevada qualidade. Continua Quito.
ResponderEliminarConcordo em absoluto com o que diz Manuel Cruz. Elevada qualidade e muita sensibilidade.
ResponderEliminarO Quito, neste texto, nos deu a expressão de um sensível e humano olhar sobre os problemas do homem e da humanidade.
ResponderEliminarQue muitos outros "Barbaídos" não arredem de suas memórias essas histórias de pura simplicidade.
Um texto em que é evidente o esmero do autor.