Do Benfica por decreto ...
Que estranho pensamento o meu,
que me leva pelos caminhos do passado. De deambular numa bruma de saudade por
terras tão distantes e tão singelas. Freixial do Campo como porto de abrigo das
minhas emoções. Recordar as gentes. Lembrar quem tão bem me tratou, numa cordialidade
e amizade que não era mascarada. Gostavam de mim e eu gostava deles. Do
Calmeiro fica-me uma eterna saudade. Cidadão sem mácula, a honra da palavra
dada em mais de um metro e oitenta de altura. No seu estabelecimento de
cafetaria, alguns emblemas e calendários alusivos ao seu Sporting de Lisboa. O
Francisco Calmeiro era um deslocado no meio da tribo encarnada da aldeia, que
venerava o Benfica da capital. Mas nada que alguma vez provocasse a falta de
harmonia fraterna entre os seus pacatos habitantes. Numa tarde de verão,
sentados à mesa do seu Café e resguardados do calor, ofereci - lhe um pequeno
galhardete da Académica de Coimbra. Pesadamente, levantou-se da cadeira.
Arrastou os pés grandes e inchados que mal cabiam nas sandálias e,
religiosamente, pendurou o presente que lhe acabava de oferecer em local bem
visível, junto a um emblema do verde da sua simpatia e do seu contentamento.
Depois apertou - me a mão e selámos uma amizade perene. Soube há dias que o
Calmeiro partiu para a Grande Viagem. Mas tenho a certeza absoluta que aquele
adereço coimbrão que um dia lhe ofereci lá continua na prateleira de uma
amizade sólida. Não quero, não quero voltar a Freixial do Campo. Recuso abraçar
a Felisbela vestida de negro para o resto de vida a chorar no meu ombro a morte
hedionda. Recuso olhar o balcão vazio sem o rosto e o sorriso de um homem de
afetos - recuso. Mas não recuso ver os outros. Os tais da tribo encarnada.
Recordar o António e o Joaquim. E o João taberneiro. O António e o Joaquim são
irmãos. O Joaquim muito falador. O António mais reservado. Porém, era o António
quem mais afirmava a sua fé no Benfica. Na sua velha “Peugeot” cinzenta de
caixa - aberta, trazia pendurado no espelho retrovisor um enorme galhardete do
clube do seu coração, com um grande emblema de uma águia de asas abertas, e em
rodapé e a letras douradas a afirmação perentória – O Glorioso. Também
em local estratégico, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima colada no “tablier”
junto ao volante, para que Ela o guardasse de algum acidente na estrada. E
assim, balançando entre a devoção ao Santuário de Fátima e o amor pelo Santuário
da Luz, o António lá ia caminhando pela vida. No intervalo desses dois bastiões
de fé, consertava janelas e persianas e era assim que ganhava o seu sustento. E
juntava-lhe alguma agricultura de subsistência, no quintal da sua pequena
moradia de janelas airosas. Já o Francisco tinha uma grande empatia comigo. E
um dia, para minha surpresa, rematou-me à meia - volta : … o senhor Pereira é
boa pessoa, vê-se mesmo que é do Benfica! E eu, colhido de surpresa naquele
chavão de que “quem não é do Benfica não é bom chefe de família”, não tive
capacidade de lhe dizer que não. De lhe afirmar que a minha cor não tinha cor.
Que a minha cor era a ausência de cor. Mas, para não o desiludir, do Benfica
fiquei por decreto. Todas as quartas - feiras eu deambulava pelas ruas
estreitas e empedradas de Freixial do Campo. No regresso, parava o meu velho
carro junto da venda do João taberneiro. O João que arrasta consigo a cegueira
desde a nascença. Mas ali estava ao balcão, tratando do seu negócio. Naqueles
fins de tarde, oferecia-me um copo de vinho tinto. Dizia-lhe então que preferia
vinho branco, enquanto as moscas dançavam num estranho bailado junto da lâmpada
mortiça pendurada do teto por um fio encardido e gasto pelo tempo. Então, com
gestos estudados, quase mecanicamente, ele trazia a garrafa e enchia-me o copo
sem desperdiçar uma gota. Depois falávamos. Apesar da sua costela encarnada, evitava
falar de desporto. Ouvia o seu pequeno rádio colocado em cima de uma prateleira
em madeira e estava a par de tudo quanto era notícia. Falava da política
nacional e internacional. Era um cidadão atento, apesar da sua tragédia negra.
Terei sempre por aquele homem humilde um carinho muito especial. E, por vezes,
naqueles dias de quarta – feira, o Benfica europeu batia-se para lá da
fronteira. Então o Francisco e o António entravam na venda e encaravam comigo e
de rajada perguntavam-me se o clube do “nosso” coração ia ganhar. E eu
acenava-lhes afirmativamente com a cabeça, resoluto. E eles, que entendiam
aquilo como uma profecia quase divina ou se como eu tivesse os dotes mágicos do
bruxo da Meimoa, iluminavam o rosto num sorriso de certeza de vitória e brindávamos
em mais uma rodada de vinho ao êxito encarnado. E o Francisco dava uma cotovelada
no braço do irmão e exclamava em jeito de elogio que me era dirigido: aqui o amigo
Pereira é mesmo um grande benfiquista !!!
QP
QP
Nunca me enganaste, Sr. Pereira!...
ResponderEliminarAs recordações dos anos passados em terras de Castelo branco são um manancial de episódios que o Quito por aqui nos vai escrevendo, bem saborosos na sua bela prosa.
ResponderEliminar...mas benfiquista não é....