voo adiado ...
É com um sorriso divertido que
vou observando da minha varanda privilegiada na praia de Porto de Mós, em
Lagos, da tentativa de um sonhador que pretendia elevar nos céus um parapente.
O homem, ainda jovem, tinha umas pernas longilíneas e corria pela areia húmida e
dura com a elegância e a leveza de uma ave pernalta. Mais fácil seria lançar-se
de uma arriba poucos metros ali ao lado, um abismo de respeito. Assim talvez
conseguisse os seus intentos e ficasse pendurado no céu azul, entre um cântico
de glória ou uma missa de finados. Olhando e degustando um robalo escalado
naquele restaurante encravado na falésia, eu intimamente queria que o jovem
conseguisse os seus intentos de iludir os Tratados de Física, o grande sonho do
Homem que hoje em grandes jatos comerciais cruza continentes e oceanos. Mas ali
era uma questão de honra. Contrariar as Leis da Gravidade de um modo mais ou
menos artesanal. Porém, a natureza venceu. Uma nova correria pela praia quase
deserta e o parapente a ruir como um baralho de cartas. Foi o fim de uma
aventura que nem sequer começou. De joelhos no chão e uma cara de desilusão, o pássaro
adiado foi recolhendo todo o panal que trouxe depois debaixo do braço e
abandonou o areal. O inverno de um dia de praia simpático e soalheiro no
inverno do seu descontentamento. Aquele episódio e aquela tentativa de voar trouxe - me à lembrança tempos antigos. No meu armazém de memórias, com
surpresa, recordei o Mestre Florival e da noite em que nos balançámos mar
adentro na sua pequena traineira. Apenas um pequeno rádio nos ligava a terra em
décadas já tão distantes. Hoje, não sei se teria capacidade para uma madrugada
longa ao relento, de me deitar na ré do barco de mãos cruzadas na nuca e um
molho grosso e duro de cordas a servir de travesseiro, a olhar as estrelas e a
ouvir o marulhar brando do mar a bater no casco da embarcação. Depois o
regresso ao cais, quando o sol já subia ainda tímido a linha do horizonte. A
juntar ao barulho ritmado do motor a bater lá no fundo da traineira e como cortejo
na cauda do pequeno barco, um bando de gaivotas a piar na rota e na cobiça do
pescado de Mestre Florival. Aquele voo falhado de um turista acidental, foi
para mim um turbilhão de lembranças e de me recordar o voo plano sereno e
elegante das inocentes aves na minha primeira e única experiência num modesto
barco de pesca, com direito a guarda de honra das simpáticas gaivotas - os meus
pássaros do sul.
QP
Um excelente texto. Não fazia ideia que também havia um Porto de Mós em terras algarvias...
ResponderEliminarAgora que vais estar novamente pela tua cidade adoptiva vais ter ocasião de conversar com os teus amigos de tempos antigos e quem sabe escreveres mais umas histórias interessantes.
Boa estadia